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S:

UM COLAR VERDE ESMERALDA

 

Cesária Escobar tinha dezesseis anos quando aceitou casar com um homem que vira  apenas uma vez na vida. Seus sete irmãos e irmãs estremeceram ao ver o casal descer do altar de braços dados, mas a mãe, já viúva, beijou-lhe a testa e desejou aos dois toda a sorte que o mundo pode dar. O homem, Apolinário Barandirán García, não fizera condição alguma à sua família, e aceitou a pouca fortuna, a beleza medíocre, o sangue miscigenado.

— Só quero um filho ou dois — disse, depois de terminado o casório. — Um varão e uma moça, quiçá.

Apolinário era vinte e quatro anos mais velho que ela, mas a mãe precisava casar as filhas, então Cesária, agora Señora Barandirán García, foi levada de Piratini até a Estancia de Los Espinos, um pequeno pedaço de terra localizado entre o Brasil e o Uruguai.

Era o ano de 1873 quando duas carroças pararam diante da vasta fazenda, seguindo a trilha de espinillos que levava aos portões principais. As árvores, que cobriam grande parte do território e estavam castanhas e verdes naquele inverno, pareciam alvejar Cesária, que ainda trajava o vestido cor de pérola. Já ela segurava a única coisa que possuía além de si mesma: um colar de esmeralda, cujo pingente, sustentado por uma corrente de ouro envelhecido, fora presente do pai para a mãe em seu próprio casamento, antes dele perder tudo que tinham.

— Ainda não se habituou, eu sei — falou Apolinário quando um grupo de empregadas afoitas apareceu para abrir os portões de ferro. — Mas esta vai ser tua casa até o dia da tua morte. Com o tempo, há de se acostumar.

Cesária não respondeu. Apolinário não era bem-apessoado, interessante ou generoso; tinha mãos robustas, uma voz monótona, um bigode marrom espesso, e a calvície já cobria boa parte da cabeça. Sua pele, branca e avermelhada, era mais clara que a sua, e sua linhagem paterna podia ser traçada por mais de dois séculos na América Platina até voltar para a Espanha.

Na noite de núpcias, fez o que qualquer mulher em sua posição teria feito: contou os minutos que passou debaixo do corpo dele, admirou as cortinas ao redor da cama e engoliu a dor que lhe rasgava entre as pernas.

— Achei que não sangraria — foi a última coisa que Apolinário disse antes de se deitar.

Cesária não dormiu naquela noite, consumida pela própria cólera. Acordou sozinha nos três dias seguintes, se lavou, e deixou que as empregadas alemãs da família Barandirán a vestissem e penteassem seu cabelo. Ouvia conforme elas reclamavam das mechas grossas demais, difíceis de desembaraçar; o resto não entendeu, já que as duas falavam pouco português.

— Saiam! — gritou Cesária, cansada de suportá-las. — Eu cuido do meu próprio cabelo!

Fez um coque simples, e cobriu o pingente esmeralda com um poncho escarlate, saindo do quarto para descer a escadaria.

A estância era, na verdade, um casarão branco com azulejos azuis decorando a parte inferior da maioria das paredes. Os portões, pilares, janelas e lampiões eram todos de ferro forjado, e trepadeiras cascateavam do telhado até o chão. Ela passou por poltronas de madeira, redes trançadas e vasos com plantas vistosas, até alcançar a porta aberta.

Do lado de fora, o vento gelado arrepiava sua pele, e um cavalo crioulo tordilho comia  feno.

— Tchê, tu não pode passar o dia inteiro comendo. — Um rapaz da sua idade tentava puxar o cavalo para longe. Sua aparência chamou a atenção de Cesária; de certa forma, era parecido consigo, com o cabelo liso, preto e grosso preso em um rabo de cavalo, um nariz comprido, e a pele marrom-avermelhada, mais escura que a sua, como a de sua mãe, irmãs e irmãos. — Vamos.

— Mas tu não presta pra isso mesmo. — Cesária deu um passo à frente, tentando não olhá-lo demais. Com a roupa de gaúcho, parecia saído direto de Piratini.

O peão virou para ela, franzindo as sobrancelhas escuras.

— Então por que tu não ajuda, heim?

Cesária sentiu-se corar, mas não respondeu a ofensa. Em vez disso, agarrou as rédeas do cavalo.

Pronto!

— Não adianta, ele volta a comer logo depois. Visse? — Afagou o pescoço acinzentado do cavalo, e olhou para ela. — Mas é bom ver que o seu Apolinário me ouviu, e decidiu contratar uma moça nova pra cozinha. As mãos da Anja andam tremendo demais, viu — continuou. — Só fico surpreso que ninguém pensou em me dizer que era uma caboclinha que nem tu.

Cesária ouviu tudo em silêncio, furiosa e atordoada. A palavra “cabocla” ecoava em sua cabeça, como se tivesse sido chamada de cozinheira, de criada. Eu não sou que nem tu, ela quis dizer, agarrando o colar escondido debaixo do poncho.

— Mas olha só, ouve o Assis aqui, já que tu é novinha… O seu Apolinário logo deve trazer a esposa pra cá, e tu sabe: com essas madames, tem que se cuidar.

— Eu sou espanhola! — Cesária interrompeu, e abriu o poncho para mostrar a joia. — E não sou madame nenhuma.

Assis deu um passo para trás e caiu de joelhos no chão, tentando cobrir o rosto com o chapéu de couro.

— Sinhá, me desculpa, eu… Eu sinto muito mesmo, por favor perdoa o que este tolo falou, às vezes não penso…

— Eu perdoo dessa vez. Fica de pé. — Cesária o segurou pela gola da camisa; Assis não era muito mais alto que ela. — Não vou dizer nada ao Apolinário, mas não vá se acomodando demais. Não quero ver tua cara de novo.

Cesária mentiu daquela vez, como mentiria muitas vezes depois, e continuaria mentindo até o fim. Ela não só viu Assis de novo; ela o procurava todos os dias e, logo, se aproximaram mais do que deveriam. Se Apolinário notou, não se importou, então ela continuou a escapar para conversar, cavalgar e admirar seu rosto formoso.

Em novembro, depois de seu aniversário de dezessete anos, prometeu encontrá-lo em um local que não houvesse gente. Cesária esperou o marido adormecer, e desceu as escadas pé ante pé. Vestia apenas a camisola de linho, e apressou-se a chegar ao lado de fora, descalça sobre a terra fria. A luz da lua iluminava o caminho até o galpão campeiro, onde Assis dormia, e lá foi, com um único pensamento em mente.

— Se quiser que eu fale a verdade, sinhá Cesária — Assis sussurrou. Era quase impossível vê-lo no breu. — Não achei que tu viria.

— Primeiro de tudo, sou mulher de palavra. Segundo, não me chama de sinhá. Eu não quero ser tua senhora, eu quero…

Nenhum beijo fora tão doce quanto aquele. O corpo de Assis combinava com o seu e cheirava a sal e feno. Não era baixo o suficiente para ela se sentir grande, nem alto demais para se sentir pequena. Não, era tudo que queria, tudo o que não tivera ainda.

No escuro, via apenas a forma dele e as sombras das folhas dançando sobre sua pele nua.

— Tá com medo? — perguntou Assis entre as pernas dela.

— Por que estaria? — Cesária tentou discutir, provar que em suas veias não corria fraqueza. — Nunca tive medo na vida.

Assis deu uma gargalhada, e acariciou o rosto dela.

— Tem uma lenda nessas bandas que diz que um varão concebido na lua cheia, por meio de adultério, nasce aguará. — Os olhos pretos dele focaram nos dela, e seus dedos correram pelo cabelo áspero de Cesária. — Uma besta metade lobo, metade gente. Mas tem razão; uma mulher destemida que nem tu não tem por que acreditar numa história dessas.

Cesária lembraria daquelas palavras para sempre. Uma besta metade lobo, metade gente, um aguará criado por meio da traição, sob os olhos atentos da lua cheia. Não lembraria quando Assis desaparecesse, não, mas quando começasse a enxaqueca, a náusea, a falta de fôlego. E lembraria mais uma vez quando Anja segurasse suas pernas, acocorada diante da cama, dizendo para fazer força, força, enquanto o monstrinho saia de dentro dela.

Mas isso aconteceu nove meses depois. No amanhecer, Cesária voltou ao andar de cima, sentindo o peso opressivo dos retratos pendurados nas paredes, e se lavou, penteou o cabelo, e dormiu ao lado de Apolinário, que continuara roncando a noite inteira.

Durante o dia, beijava Assis em momentos furtivos, e os dois tiveram uma semana de paz, perturbada apenas por um par de olhos verdes.

— Eu te amo, Cesária — jurou Assis, abraçando sua cintura. Estavam escondidos atrás do galpão, e ela descansava o rosto na curva do pescoço dele. — A gente podia fugir, viu. A gente pode vender esse teu colar, e eles nem iam saber pra onde a gente foi.

Na manhã seguinte, Cesária acordou sorrindo, e sentou diante da penteadeira para colocar o colar esmeralda, mas a joia não estava mais lá.

— Ele partiu, Cesária — disse uma voz por trás de seu ombro. Um homem de olhos verdes, da idade de Apolinário, cuja altura era impressionante perto da sua. — Não só isso, mas levou consigo um dos nossos cavalos.

Trêmula, Cesária empurrou o banquinho para longe. Olhou para o rosto de Silvestre, o segundo irmão da linhagem Barandirán García, esperando algum tipo de chantagem.

— Isto é tudo. Cuide-se, por favor.

Silvestre foi embora tão rápido quanto chegou, e ela tocou o espectro do colar que nunca mais voltaria ao seu colo. Sozinha de novo, como sempre estivera, encarou as mãos delgadas e as pernas enfraquecidas.

— Maldito seja — murmurou, lívida, fraca, como se já estivesse morta. — Maldito seja, uma e outra vez.

Cesária encarou o próprio reflexo no espelho, as olheiras debaixo dos olhos pretos, o nariz forte, o rosto longo e ovalado. Ela forçou a escova do couro cabeludo até as pontas, arrancando fios sem compaixão. Recomeçou o processo várias vezes, tentando deixá-lo mais fino, mais macio, ou melhor, como diria Anja. Não daria a nenhum deles a satisfação da sua desgraça. Não derramaria lágrimas por nenhum homem vivo.

— Você é a Señora Barandirán — Cesária entoou em voz alta, para não esquecer. Abriu o pote prateado do pó de arroz, e segurou o aplicador bege, estapeando as próprias bochechas. — Señora Barandirán Escobar.

A:

A CHAVE DO COFRE

 

Ezequiel era o quarto e último dos irmãos Barandirán García, mas sentia um enorme orgulho de ser o confidente de todos eles. Confiança, ele acreditava, era uma questão financeira; só se conhece outra pessoa de verdade quando se sabe com o que ela gasta seu dinheiro.

— Não se preocupe com tais pequenezas, irmão — falava Ezequiel cada vez que Apolinário mostrava um documento. Massageou os ombros do irmão mais velho, e deu um beijo adocicado no topo de sua cabeça calva. — Eu cuido de tudo, ¿?

Tinha nascido seis anos depois de Hemétria, dezoito depois de Silvestre, e vinte e três anos depois de Apolinário, que herdou a Estancia de los Espinos logo após o nascimento de Ezequiel.

Ezequiel era um rapaz de dezessete quando foi estudar Ciência Econômica na França, consciente que, se quisesse criar seu espaço naquela família, teria de lutar por ele.

— Irmã querida! — Ezequiel beijou as costas da mão de Hemétria assim que chegou em Porto Alegre no último mês de 1873. — O que foi que fizeram contigo?

Hemétria era a parente da qual mais se lembrava. Ao contrário de Apolinário e Silvestre, ela também era criança quando ele nasceu, e os dois cresceram juntos na Estancia. Mas a mulher de cabelo frisado e desordenado não era a menina de suas memórias: a pessoa à sua frente era pele e osso, tão pálida que parecia doente, e seus cachos castanhos apresentavam manchas grisalhas.

Ezequiel sabia que Hemétria fora confinada em um sanatório, já que os irmãos avisaram em uma carta sucinta: Hemétria ficou louca; está com o demônio no corpo. Nossa família será melhor sem ela.

— Não te falaram? — A voz rouca de Hemétria escondia um sorriso maldoso. Ela fora charmosa um dia, mas agora seu nariz aquilino destoava do rosto, seu corpo macilento sobrava dentro do vestido branco, e seus grandes olhos marrons aterrorizavam Ezequiel. — Eles acham que fui possuída.

Ezequiel era um Barandirán e, como tal, sabia segredos demais para acreditar em qualquer um deles.

— Preciso que aguarde por mim mais um pouquinho, irmãzinha querida. Logo, vamos morar juntos em Porto Alegre, só você e eu. E aí nem Apolinário nem Silvestre vão poder nos repreender.

Levou dois anos até Ezequiel voltar para a Estancia de los Espinos. Começou a trabalhar como contador, fez fortuna própria, levou Hemétria para longe daquele lugar horrível, e transferiu boa parte do cofre dos Barandirán para Porto Alegre, mandando aos irmãos uma breve correspondência:

— “Caro Irmão” — leu Hemétria em voz alta, a voz zombeteira. — “Por favor, perdoe minha ausência. Estive trabalhando como uma mula, mas é tudo por nossa família, eu juro! O tratamento de Hemétria fez milagres; é agora uma verdadeira dama!”

Hemétria soltou uma gargalhada estridente. Ezequiel cobriu a risadinha com a mão.

— Continue, por favor.

— …Estamos afoitos para conhecer tua esposa e filho. Tenho certeza que o mais jovem Barandirán deve ser um homenzinho e tanto. — Hemétria secou lágrimas de pura alegria dos olhos sem vida, e dobrou a carta com cuidado. — Rá! Como se eu quisesse conhecer aquela meretriz.

— Não seja tão dura, minha cara. Só porque nenhum de nós pretende casar, isso não significa que seja elegante culpar a esposa de Apolinário. Silvestre me disse que ela é mais Barandirán que nosso próprio irmão, ultimamente.

E ela era.

Horas depois de sua chegada, Cesária Barandirán apareceu com um vestido de maternidade completamente preto. Os botões acabavam abaixo do peito, mostrando o volume de sua barriga redonda, e um xale vermelho sangue cobria seus ombros e costas. A mulher arrastava uma criança pequena pela mão, um menino de uns três anos, que olhava para os recém-chegados com olhinhos assustados.

— Boa tarde — disse Cesária, mas as palavras pareciam mais um anúncio do que uma saudação. Sua voz ecoou na longa sala de jantar, e a sombra dela e de seu filho se misturaram na parede. — Já era hora de nos conhecermos.

Apolinário não se deu o trabalho ficar de pé ao apresentá-los. Colocou uma fatia de queijo no pão que comia, e apontou para os irmãos:

— Ezequiel, Hemétria; já falei sobre eles. — O bigode de Apolinário estava coberto de farelos, e ele só olhava para a esposa na hora de falar. — Esta é minha mulher, Cesária. Este é nosso filho. Venha conhecer a tia e o tio, Calisto.

Ezequiel congelou ao ver o menino mais de perto. Havia algo errado nele—algo que precisava ser dito em alto e bom tom, mas sua voz o abandonara quando mais precisava dela. Olhou para Apolinário, que continuava comendo e bebendo vinho tinto, e para Silvestre, de pé do outro lado da mesa. O irmão não parecia ter notado nenhuma estranheza, mas talvez fosse porque estava acostumado com o garoto, acostumado com sua…

Ezequiel se virou para Hemétria, esperando que ela fosse mais eloquente que seu corpo fraco e inútil. A irmã encarou a criança, mas também ficou em silêncio.

Sentindo-se encurralado, Ezequiel procurou Cesária, que parecia desafiá-lo com os olhos estreitos. Diga algo, vá, a expressão dela dizia. Atreva-se, diga algo.

Derrotado, Ezequiel ajoelhou-se diante do menino, e abriu um sorriso forçado.

— Calisto, que lindo nome! Me chame de Tío Ezequiel, ¿?

 

L:

CHEIRO DE LOBO E HOMEM

 

Hemétria Barandirán era louca, disso todos sabiam. Talvez tivesse nascido assim, talvez a loucura tivesse sido forçada em sua goela, mas fosse por consequência ou natureza, o fato é que ela não desejava ser de nenhuma outra forma. A ovelha negra da família, costumava dizer, até conhecer um menino muito mais detestado do que ela.

— Ezequiel — chamou Hemétria, levantando os olhos arredondados do jornal e dos óculos pincenê em seu nariz. — Eu adoraria um vestido novo.

— Qualquer coisa por ti, irmã adorada — Ezequiel respondeu quase de imediato. Ela quase podia sentir o rosto quadrado dele e as bochechas prominentes se iluminando com o pedido.

— Ah, eu também gostaria de visitar Apolinário este fim de semana. Pode fazer isso por nós?

O irmão caçula estava assim desde que a tirara do sanatório: sim, irmã querida, o que você desejar, hermanita, é só dizer quando precisar de algo. Quase como quem sente satisfação pessoal em ser útil, não como quem realmente quer ajudar o próximo. Não que Hemétria se importasse com os motivos, claro, mas ele era um palerma se achava que ela não conseguia ver o que havia atrás daquela máscara tola.

Dito e feito, os dois foram até a Estancia de los Espinos. Hemétria detestou cada segundo da viagem, do cheiro suave das bergamotas prendendo-se às suas roupas, ao caminho de espinillos com flores amarelas, cercados de abelhas.

— Não a faz lembrar de nossa infância? — Ezequiel perguntou com a voz baixa e afetada.

Hemétria sentiu como se o que sobrava de sua alma tivesse secado dentro dela.

— Faz mesmo.

Infância era uma palavra que, assim como os espinhos cinzentos dos espinillos, cortava e perfurava. Hemétria não gostava de pensar sobre isso, das horas que passara em seu amplo quarto, dos rangidos à noite, do repugnante e silencioso Silvestre.

— A señorita Hemétria e o señor Ezequiel chegaram — disse uma das empregadas, seja lá qual fosse seu nome.

— Já era hora. — Cesária apareceu por trás de um pilar, magra e elegante. Seu cabelo preto estava preso em um coque alto, e trajava um vestido da mesma cor. — Disseram na carta que chegariam na sexta-feira. Nos fizeram gastar um bocado de comida.

Se pudesse, Hemétria teria arrancado a expressão altiva do rosto de Cesária, mas Ezequiel foi mais rápido que ela.

— Ah, irmã, nós sentimos muito! — Ele beijou a mão da cunhada, mas Cesária afastou-se em seguida. — Onde estão as crianças?

A outra mulher apontou para o campo diante deles com o queixo pequeno. Hemétria apertou os olhos. À distância, duas crianças estavam deitadas na grama reluzente enquanto riam, riam, riam. A memória mais forte que tinha de Calisto era de cinco anos atrás: uma criança bonita usando traje de marinheiro, segurando a irmãzinha pela mão. Agora ele estava maior e vestia camisa e calças, e a menina estava deitada em seus braços, acabando-se em risadinhas contentes.

— Calisto! Violante! Venham cá! — Apolinário trovejou da varanda. — A tia e o tio chegaram!

Calisto sorriu, travesso, e segurou a irmã por baixo dos braços, erguendo-a no colo. A garota, que tinha oito anos, abraçou o pescoço dele, e se cobriu com um poncho cor de cereja, os pézinhos sacudindo no ar.

Ele correu até lá, suando e sorrindo, o cabelo retinto brilhando sob o sol, sua pele marrom mais escura do que da última vez que o vira.

Buenas tardes, Tio Ezequiel, Tia Hemétria — falou Calisto, na mistura de Espanhol e Português que lhe era comum. Apolinário pegou Violante para sentar em sua perna, e tirou as folhas secas do cabelo preto e cacheado da filha.

Buenas tardes — ela repetiu, sacudindo a cabeça. O rosto de Violante parecia o de uma boneca: traços esculpidos, pele clara, e um semblante apático, sempre igual.

— Como cresceu, homem! — Ezequiel sorriu de forma cortês, mas Hemétria sabia que ele não parava de pensar na constituição do sobrinho. — E a pequena Violante está virando uma dama adorável! Como vão as aulas de piano? Logo, logo, vamos ter que nos preocupar com os pretendentes!

— Não está nem perto disso, Ezequiel. — A resposta de Cesária foi cortante, e olhou com raiva para Apolinário, como se achasse que o marido deveria intervir no assunto. — Vamos comer?

Por meia hora, o almoço foi tranquilo, como se todos estivessem felizes, só daquela vez. As empregadas trouxeram três mesas para a grama, e serviram a comida ali. Os homens se sentaram ao redor de Apolinário, as mulheres sentaram na segunda mesa, e as duas crianças ficaram em uma mesinha redonda, rindo de algo que Calisto tinha dito. Entediada, Hemétria encarou o sobrinho de novo, seguindo as linhas do nariz reto, as narinas largas, a boca grossa.

— Sabe o que acho fascinante, Cesária? — Hemétria sussurrou para a cunhada. — Ninguém quer falar sobre isso, é claro, mas o Calisto é muito mais escuro que tu!

Cesária parou de comer. O garfo de prata tremeu sobre o charque.

— Sei que tua mãe é bugre, mas tu não és tão escura assim, mulher. Se não soubesse, nem teria notado!

Hemétria ficou satisfeita de vê-la daquele jeito. Cruzou as pernas sob a saia longa cor de vinho, e continuou:

— E a Violante, bem, ela está virando uma españolita perfeita, não achas? Como que tua gente diz? Uma sinhá, é isso? E tão branquinha, como meu irmão! — Hemétria procurou Apolinário com falsa afeição nos olhos piscantes. — Se eu olhar com vontade, acho que encontro o lado brasileiro, mas não como no Calisto, ah, não.

O cheiro da carne salgada combinado com o olhar fúnebre de Cesária fez Hemétria rir um pouco. Na outra mesa, Calisto e Violante haviam levantado. A menina segurava três dos dedos dele, guiando-o de volta para o lado de fora.

— Calisto, vamos andar a cavalo.

— Na verdade, ele me lembra alguém! — Hemétria bateu palmas, checando para ver se algum dos homens podia ouvi-la. — Um rapazote que trabalhava aqui, um caboclo, tu conheceste? Provavelmente não, mas acho que teriam tido muito do que falar, não concordas?

Quando olhou para as crianças de novo, Calisto tinha desaparecido. Ele voltou do galpão cavalgando um cavalo prateado, e parou diante deles.

— Olha, mamá — disse ele. — Olha como sou bom com os cavalos do pai.

Apesar de não ter tido reação da mãe, Calisto não desistiu, e ergueu a irmã, posicionando-a entre seus braços e pernas. Não tiveram tempo de partir; Cesária correu até eles, e puxou Violante de volta para o chão. Silvestre, que estava mais perto, apressou-se a ajudar, e prendeu a menina entre seus braços fortes.

— Seu animalzinho! — Cesária agarrou Calisto pelo braço, forçando-o a desmontar. Ele caiu na grama, soluçando, e Cesária estapeou seu rosto. — Quem tu acha que é?

Todos assistiram conforme Cesária arrastava a criança de volta para casa, esbofeteando Calisto todas as vezes que ele reclamava ou perguntava o que tinha feito errado. Fervilhando de curiosidade, Hemétria sussurrou para Ezequiel que precisava ficar mais uma semana lá, hermanito, por favor.

Ezequiel concordou, mas ele e Silvestre voltaram para Porto Alegre no dia seguinte. Apolinário não esse importou; ela era sua irmã, afinal:

— Mulheres entendem mais de criança do que homens — confessou a Hemétria. — Se o pai se mete, a mãe perde a autoridade.

A coisa mais engraçada foi assistir Calisto tentando se aproximar de Cesária quando ela nem olhava para sua cara. Em vez disso, mantinha Violante perto de si, segurando a mão da menina para que ela não saísse de seu lado.

Pensando nisso, Hemétria esperou um momento onde não houvesse ninguém por perto, e entrou no quarto de Calisto, trancando a porta atrás de si.

— Olá, querido — sibilou Hemétria. Seu cabelo cor-de-rato estava preso e bufante, com alguns fios caído, à moda da época. — Não está se sentindo bem nos últimos dias, não é mesmo?

Calisto olhou para baixo, e a luz tênue vinda da janela iluminou seu rosto lindo. Hemétria prostrou-se diante dele: mais alta, mais magra, mais velha.

— Calisto — chamou, sua voz ficando mais aguda conforme falava. Ela segurou o menino pelas bochechas. — Nós dois somos iguais.

— Hã?

— Silvestre fez o mesmo comigo, meu querido. Não tinhas notado antes? Acho que não se dirige a mim desde que eu tinha a tua idade!

Calisto não entendeu, mas Hemétria não se importava. Ela afagou sua bochecha com um dedo pálido, e fez cafuné no cabelo comprido.

— Ele me trata como se eu fosse uma assombração, pior, me trata como se eu nunca tivesse existido! — A risada estridente de Hemétria fez Calisto levantar em um pulo. Havia algo em seu rosto apavorado que ela gostava, um certo charme. A lembrava dela mesma quando tinha doze anos, sentada na mesma cama, observando Silvestre entrar seu quarto à noite. — Eu nunca entendi, mas vou te dizer… Me deixa com tanta, tanta raiva… Logo mais, vai sentir o mesmo que eu.

— Eu não sei por que a mamá ficou tão furiosa comigo — murmurou Calisto.

— Cesária é uma mulher cruel, meu pequeno Calisto. É por isso que só ela se entende com Silvestre, porque o coração dela é ruim. Mala. Terrível.

O menino olhou para ela. Hemétria conseguia ver o homem que ele viraria começando a definir seu rosto.

— O que tem o Tío Silvestre?

A pergunta a surpreendeu por um instante, mas acabou gargalhando de novo. O que aconteceria depois seria uma hora inesquecível: Hemétria saiu de lá satisfeita, como se tivesse tomado de volta para si algo que sempre deveria ter sido dela, mas Calisto acabou enroscado na cama, chorando.

— Não chore, tonto — disse. — Tem que te preocupar com a Cesária, não comigo… Ela vai te enlouquecer ainda, como o Silvestre me enlouqueceu. Lembra bem, Calistinho, esses pecados que ela tenta esconder são dela, não teus.

Horas depois, na janta, Calisto apareceu, completamente vestido, o cabelo escuro cobrindo parte do rosto.

Mamá, precisamos conversar, por favor. — Sua voz não era mais do que um gemido, e Hemétria o achou ainda mais adorável. — É importante, eu…

Cesária esmurrou a mesa, e pegou Calisto pelo cabelo.

— Vou te ensinar a respeitar tua mãe! — Foi o que ela disse antes de levá-lo para fora da sala de jantar.

No corredor, Cesária o repreendia, mas as palavras eram abafadas pela distância. Violante correu para a janela, e Hemétria foi atrás da sobrinha. Duas sombras caminhavam do lado de fora, a sombra de uma mulher e a de um rapaz alto sendo puxado pelo pescoço. De lá, viram Cesária empurrar o filho para dentro do galpão campeiro, e bater a porta com força.

A lua brilhava, solitária no céu preto e sem estrelas, e o silêncio espectral continuou por cinco longos minutos. Então, Calisto começou a urrar, e seus gritos ficaram tão altos que deixaram de parecer humanos. Hemétria sorriu.

— Que semana ingrata que o pobre Calisto está tendo, não é mesmo?

 

I:

AS COSTAS DO VESTIDO DELA

 

Calisto Barandirán Escobar virou lobo pela primeira vez no ano de 1885, sob a luz tremulante da lua cheia. Ninguém no casarão parou Cesária quando ela o agarrou pelo cabelo para levá-lo até o galpão. O pai continuou comendo, Tía Hemétria abriu seu pior sorriso, e Violante o olhou com seus olhos de jabuticaba sempre atentos.

Calisto tentou se soltar e caminhar por si só, mas tropeçou, e seus pés e joelhos bateram contra a grama úmida.

Mamá — Calisto choramingou, mas, assim como tinha acontecido com Hemétria, ele não teve coragem de usar força contra ela.

Na verdade, estava paralisado; seu corpo parecia parte da terra, da cama, das árvores, das paredes compridas do próprio quarto. O punho se recusava a formar um soco ou empurrão, as pernas falhavam em arriscar uma fuga rápida, a garganta não suportava produzir um único som. Todo seu corpo doía—mesmo sem machucado algum, ainda sentia como se estivesse ferido.

Mamá… — Àquela altura, não queria nem tentar pará-la. Já tinha parado de se importar com o que aconteceria a seguir. — Eu preciso falar com a senhora sobre a Tía Hemétria, e o Tío Silvestre… A Violante, ele…

O nome queimou em sua língua. A irmã tinha aparecido em sua cabeça uma e outra vez quando Hemétria o cobrira com seu corpo. Será que o Silvestre falou para sua mãe o que ele gosta de fazer com menininhas? Ela rira. E pergunto, também, se ela vai se importar com o que ele pode fazer com sua linda irmãzinha, eu já consigo ver os olhos dele a seguindo para todo canto que a saia dela vai…

Cesária se virou para ele antes de abrir o as portas do galpão.

— Tu não é nem mesmo um Barandirán — falou. — Não tem direito algum de se dirigir a eles, a mim, e muito menos à sua irmã!

Com um empurrão, Cesária o jogou no chão, sobre camadas de feno. Quando ele olhou para cima, conseguiu ver os cavalos que tanto adorava parecendo fantasmas na calada da noite, bufando para os dois intrusos.

— O que quer dizer?

Ao contrário da Tía Hemétria, Cesária não riu. Ela o pegou pela camisa, e apontou para os pilares de madeira.

— Foi aqui que tu foi concebido, bastardito. — A mãe afundou os dedos no seu rosto, seguindo o rastro que as mãos de Hemétria tinha deixado. — Foi aqui que aquele ladrão do teu pai me tomou, em uma cama de sujeira e mentiras!

Algo acontecia dentro de Calisto, algo que não conseguia controlar. Ele não tinha mais certeza onde estava—o galpão ou o quarto?—e suas mãos tremiam com o vento gelado. Nesta brincadeirinha, é preciso primeiro tirar a roupa… Uma voz feminina dizia antes de dar um tapa em seu rosto, como a mãe tinha feito.

A gargalhada de Hemétria parecia tudo menos uma risada; parecia um bicho, um gato selvagem, uma onça, um tamanduá.

— Por que a senhora está sendo tão cruel? — Calisto perguntou, cabisbaixo, o cabelo cobrindo a vista. — Ela tem razão, a senhora é uma mulher terrível, mãe…

O garoto diante de Cesária parou de se mexer, talvez até mesmo de respirar. Por dentro, ouvia apenas as injúrias da mãe. Por dentro, ouvia apenas os sons repetitivos e asquerosos vindos de sua virilha, os próprios soluços sufocados. Por dentro, Hemétria segurava as próprias saias.

Por fora, virava uma fera.

— Calisto — a voz de Cesária mudou. Soou fraca, frágil… — Calisto?

Se fosse uma menina, eu até que sentiria pena, quem era aquela mulher falando em sua orelha? De quem eram aquelas garras, eram suas mãos? Quando for mais velho, há de me agradecer, quando abrir as pernas de alguma menina tola, vai pensar: a Tia Hemétria me ensinou tudo que eu sei.

Suas pernas e braços estavam mais longos, mais escuros. O cabelo virou pelo—castanho avermelhado, branco, preto—e o pelo virou crina. As orelhas ficaram grandes, pontiagudas. O rosto virou um focinho e cresceu presas.

Calisto ergueu a cabeça e uivou.

 


 

Era 1889, e a família Barandirán aproveitava o sol agradável ouvindo música na varanda; apenas Hemétria e Silvestre não estavam presentes. Na cadeira mais afastada, Calisto encarava a menina tocando o piano, visível pela porta que levava ao interior da casa.

Sinhazinha Violante. A perfeita españolita, virtuose do piano, com a pele de porcelana e o cabelo preto como a noite, tocando sabe-se lá que prelúdio aprendera agora.

— Bravo! — Ezequiel aplaudiu quando ela terminou. — Cada dia fico mais admirado com seus talentos!

Violante fechou a tampa do piano com cuidado, e espanou o vestido branco de verão.

— Venha comer conosco — Cesária a chamou, puxando a cadeira ao lado dela. Calisto seguiu Violante com os olhos, cotovelos sobre a mesa e as pernas bem abertas, do jeito que sua mãe consideraria mais grosseiro: “Como um vagabundo!” ela diria.

— Cesária quer que ela estude música na Europa — disse Apolinário. — Acha que a menina tem futuro.

— Se a Chiquinha Gonzaga está conseguindo, por que Violante não poderia? — Cesária sorriu para a filha de catorze anos. Ela pegou a ponta da trança de Violante, e a colocou sobre o peito da garota como se fosse um broche.

Ezequiel abriu a boca, visivelmente desconfortável.

— Mas e o casamento? — Quis saber. — Ela já está quase chegando na melhor idade. O filho de um amigo meu tem a idade de Calisto, os dois formariam o par perfeito!

Não — grunhiu Cesária, seu vestido preto contrastando com o vestido de renda branca de Violante. As empregadas apareceram com mais comida, e Calisto sentou diante da irmã. — Ela há de estudar primeiro.

— Não acha que isso é colocar barreiras demais no futuro da menina, Cesária? — Ezequiel limpou o suor da testa com um lenço creme. — Pense bem…

— Não, não acho. — Cesária forçou um sorriso educado, e apontou para o único filho. — Por que não casa Calisto, se quer tanto? Se conseguir achar uma noiva que o queira, claro está.

— Bem… — Ezequiel estava desesperado para achar uma desculpa adequada, Calisto sabia. — A maior parte de meus amigos tem filhos homens, sabe como é, o que torna tudo um pouco mais difícil. Não que Calisto não seja bem-apessoado, não é isso! Sem contar que ele deve querer viver um pouco antes de se prender a uma esposa, ¿no?

A gargalhada de Calisto ecoou na varanda.

Tío Ezequiel, o senhor tem toda a razão! Por que me casar? A Violante é a única Barandirán de verdade de nós dois, afinal.

Na ponta mais afastada da mesa, Apolinário virou os olhos. Calisto bebeu um gole de vinho tinto.

— Papai não gosta quando brinco — continuou, zombeteiro. Então, esticou-se na direção de Violante, cujo rosto estava tão imóvel que parecia feito de biscuit. Às vezes, Calisto achava que a irmã não tinha sentimento algum, e sentia ainda mais raiva que tudo de ruim acontecesse com ele e nunca com ela. — Ela não parece se importar. Ou sim, Violante?

Cesária bateu os punhos fechados contra a mesa, fazendo uma faca de prata cair no chão.

— Vai para o teu quarto, Calisto.

Calisto ficou de pé, pegou a taça de vinho, e jogou o conteúdo na cabeça de Violante, vendo o líquido escorrer por seu vestido. A gritaria que seguiu veio de todos, menos da irmã caçula, e Calisto deu de ombros antes de subir a escadaria.

 


 

Em 1891, um mês antes de Violante fazer dezesseis anos, a família começou a preparar a festa que aconteceria na Estancia de los Espinos. A alta sociedade de Porto Alegre tinha sido convidada para conhecer uma moça cuja beleza era proporcional ao seu talento no piano.

— O que acha deste, papá? — Violante mostrou o novo vestido a Apolinário. Ela estava encantadora na renda perolada, e seus cachos pretos e grossos desciam até a cintura estreita.

Cesária franziu ao seu lado, as sobrancelhas escuras criando rugas em sua testa.

— Não sei se gosto deste vestido. No seu corpo… — Ela pinçou a saia como se estivesse podre, tentando encontrar as palavras mais apropriadas para o que diria a seguir. — As ancas dela são como as de minha mãe, são… Largas demais, pesadas demais. Tu sabe do que eu estou falando, Apolinário, que tipo de mulher que… Não dá, é vulgar demais.

Calisto bocejou. Aquela conversa o aborrecia. Violante, como sempre, tinha toda a atenção, todos os cuidados, enquanto ele continuava lá, mais próximo de uma cadeira do que dos donos da casa.

— Quanto ódio, Calisto, tudo isso é só para ela? — Lábios tocaram sua orelha, e o sussurro fez arrepios correrem por suas costas.

Quando Hemétria viu o desgosto em seu rosto, ela caiu na risada.

— Vai pro inferno — disse Calisto, respirando fundo. — Nem olha pra minha cara.

Hemétria sentou no divã, distante o suficiente para que as pernas dos dois não se tocassem, mas próxima demais para que pudesse ficar calmo.

— Punir os outros com silêncio deveria ser o negócio familiar. Certamente é uma atividade prazerosa por aqui. Eu e Silvestre… Tu e eu… Cesária e tu… Tu e ela…

Ela, Violante, com seus vestidos bonitos, seus modos ideais, seus lábios de carmim. Ela, entre o pai e a mãe, longe de Hemétria, sem nunca experimentar o que era estar presa em uma jaula.

— Eu não sou como nenhum de vocês. — Calisto ficou de pé. — Ela até pode ser, mas eu não sou.

Saiu andando, mas parou ao ver Silvestre encostado no marco da porta. Calisto não conseguia evitar sentir nojo ao vê-lo, lembrando do dia em que Hemétria o trancara no quarto, seu cabelo parecendo um ninho de víboras castanhas caindo sobre seu rosto.

Quando eu tinha a tua idade, o Silvestre tinha vinte e três, e adorava brincar comigo…

— Licença — Calisto passou pelo tio, e correu para o quarto.

 


 

— Eu me pergunto o que a tua muñequita espanhola diria, se soubesse o que tu faz comigo todo santo mês — sorriu Calisto quando a mãe o acorrentou às paredes do galpão. — O que ela acharia da senhora, me torturando pela própria maldição?

Cesária sacudiu a cabeça, fria como sempre.

— Foi teu pai que te amaldiçoou, que me amaldiçoou — silvou. — Essa coisa que tu vira é uma forma de me torturar.

Devagar, a luz da lua atravessou a janela simples até cobri-lo dos pés à cabeça, e Calisto começou a se transformar. Cesária assistiu o espetáculo com asco, vendo o corpo do filho ficar mais corpulento, mais peludo, maior.

Quando olhou para ela de novo, a cadeira estava quebrada, e só a fúria permanecia dentro de si.

— Fica quieto…

Calisto ignorou a ordem, e tentou pular no pescoço da mãe. A corrente o parou a tempo, mantendo-o centímetros longe dela.

— Comporte-se, seu animal! Eu preciso ir trancar o quarto da tua irmã.

O lobo guará enorme e com jeito de homem uivou, esgueirando-se para o outro canto do galpão campeiro.

 

G:

A PORTA ABERTA

 

Silvestre Barandirán sempre chegava à Estancia de los Espinos carregando um grande saco em suas costas. Desde que o pai morrera, ele assumira os aspectos mais práticos do negócio familiar: viajar, vender, escolher, barganhar. O saco continha suas posses e presentes para os parentes, mas a imagem dele carregando aquilo tinha apavorado crianças por duas gerações.

Cesária também não gostava de vê-lo, mas não era tanto pelas lendas do homem do saco, como pelo que sabia de suas depravações.

— Venha — mandou, e a filha andou atrás. Silvestre os visitava a cada quinzena, e ela queria que Violante estivesse o mais longe possível dele. — Não quero que perca nenhuma de suas lições.

Seus dias costumavam ser assim: trançar o cabelo de Violante, tomar café com a família, assistir a filha tocar o piano, ler com ela, almoçar, assistir a filha tocar o piano, jantar, trancar a porta de Violante, dormir. Cesária acreditava que Violante não deveria passar um único segundo sozinha, especialmente com os homens da casa por perto.

— Por que a senhora está tão tensa? — A garota sussurrou. Estavam sozinhas no jardim de inverno, mas Cesária tivera a impressão de ter visto uma sombra masculina à espreita.

— Nada com que tu precise te preocupar — Cesária respondeu, massageando o couro cabeludo. — Teu tio vai ficar mais tempo desta vez.

Ah.

— Silvestre é um homem de confiança, disto não tenho dúvida, mas ele… — Cesária abaixou a voz. — Ele não é santo, Violante. Não faz essa cara! Todos os homens são podres por dentro. É por isso que tranco teu quarto todas as noites.

A menina colocou a mão dentro de uma vasilha de cristal, brincando com os butiás e espremendo uma das frutinhas com os dedos.

— E o pai?

— Um bom para nada — respondeu Cesária. — Teu pai não moveria uma palha nem que estivesse prestes a morrer.

Tío Ezequiel?

— Um pederasta egoísta que quer vendê-la como uma vaca premiada só para ter lucro. — Cesária estava impassível, mas Violante parecia distraída comendo uma fruta. — Dinheiro é tudo que importa para aquele ali.

— Eu achei que ele era gentil.

— Vou te contar uma coisa sobre o Ezequiel — continuou. — Teu “tío” convenceu o Apolinário a levar todo nosso dinheiro para Porto Alegre, e sabe onde está a chave do cofre?

— Onde?

— Pendurada no pescoço dele! — Cesária fez uma pausa. — Tua tia pode ser uma cachorra desalmada, mas ela me disse uma vez que ele guarda documentos falsos na casa dele para fingir ser outras pessoas.

— E o meu irmão?

Cesária olhou nos olhos da filha: pretos com os dela, pequenos como os dela, com pálpebras quase invisíveis como as dela. Pensou em dar um tapa em sua cara, um método que se provara eficaz com Calisto, mas decidiu se conter.

— Não quero nem ouvir falar do teu irmão — disse Cesária. — É hora do meu banho. Tu pode levar os livros para lá.

Violante levantou, as mãos cheias de butiás.

— Mãe, posso tocar o piano? — Ela perguntou. — Tío Silvestre e papá só voltam mais tarde, e o Calisto saiu com os cavalos. Por favor?

Cesária suspirou. Bem que queria passar um tempo sozinha.

— Só hoje.

Violante ficou na ponta dos pés para beijar a mãe na bochecha; era quase uma cabeça menor que ela.

Do lado de fora, Calisto cavalgava um cavalo crioulo prateado, o cabelo comprido sacudindo com o vento. Depois de um tempo, voltou para a fazenda, já cansado. A casa estava estranhamente silenciosa; não ouvia a batida dos saltos fazendo a madeira ranger, nem as conversas abafadas pelas paredes, nem a melodia vinda do jardim de inverno.

Um cheiro adocicado escapulia da cozinha, e Calisto quis saber o que Anja e Anelise estavam preparando dessa vez. Tirou as botas de couro e andou com cuidado para assustar as criadas.

Para sua surpresa, a única mulher lá era Violante, parada diante da mesa com uma fatia cremosa de bolo nas mãos. A irmã piscou várias vezes com os lábios entreabertos.

Calisto congelou. Os dois pareciam um par de estátuas, um de frente para o outro.

— O bolo ainda está quente — Violante murmurou. — Aipim com coco…

Ela deixou a fatia em cima de um guardanapo, e cortou um pedaço retangular para ele, oferecendo-o com as duas mãos.

— E a mãe?

— Tomando banho — disse Violante. — Não dá pra ouvir nada do quarto deles.

Era a primeira vez que os dois estavam sozinhos em sete ou oito anos. Calisto já tinha esquecido quando tinha sido a última vez que falaram, ou que tivera a chance de olhar para ela tão de perto, sem precisar fingir fazer outra coisa.

— Gostou? — Violante perguntou, o canto da boca sujo de bolo.

Calisto concordou com a cabeça. Tinha medo de falar. Por instinto, levou a mão ao rosto de Violante, como se a mente e o corpo tivessem se separado completamente, e ele não pudesse controlar os dedos que tocavam a pele da bochecha e do lábio inferior dela, limpando o creme e o farelo.

Violante não se afastou. Ela observou em silêncio, como a boneca que sempre achou que era. Nenhuma reação, palavra ou expressão. Calisto deu meia volta.

— Tu não deveria falar comigo — resmungou, com mais raiva do que estava esperando. — Se a mãe descobrir, ela castiga nós dois.

Calisto logo descobriria que ela não era feita de porcelana, afinal; era tão humana quanto ele. A primeira evidência veio durante o jantar, quando a ouviu discutir com a mãe no estúdio. Não conseguiu compreender as palavras desconexas, mas ficou surpreso ao notar que Violante tinha levantado a voz.

Incapaz de compreendê-las, Calisto voltou para o quarto, fechando a porta.

A segunda evidência veio vinte minutos depois. Os passos rápidos de Violante foram seguidos pelas batidas dos sapatos de Cesária contra o chão. Calisto já conhecia a rotina noturna das duas: a mãe levava Violante ao quarto e trancava a porta com chave. Depois disso, ia para o quarto de Calisto e o trancava lá também.

Desta vez, porém, Cesária só entrou no quarto dele, furiosa. Não disse nada, só bateu a porta com força, e virou a chave. Um mal-estar começou a se espalhar pelo seu corpo: por que Cesária o tinha trancado ali, mas tinha deixado aberta a porta de Violante?

A terceira evidência foi a razão de não ter conseguido dormir aquela noite. Dez minutos depois de Cesária sair e todos os lampiões da Estancia de los Espinos terem se apagado, ele começou a ouvir um som sufocado.

Primeiro pareceram lamúrias em voz baixa, mas depois os gemidos viraram palavras:

— Não… Não… Não…

Outro som vinha do quarto ao lado do seu. Um objeto enorme estava sendo arrastado pelo chão, embolando o tapete até bater contra a parede. A mobília, aparentemente, não era grande o suficiente para fazer uma barricada, já que, à meia-noite, alguém abriu a porta com relativa facilidade.

Quando Violante ficou quieta, Calisto correu até a própria porta, tentando abri-la, mas não havia o que fazer. Inferno, grunhiu, pensando apenas na irmã. Inferno, inferno, inferno. No meio do desespero, teve uma ideia: a janela estava aberta e as cortinas voavam para o lado de fora com a brisa noturna. Calisto escalou a travessa. Naquele ângulo, conseguia ver que poderia usar as trepadeiras para entrar pela janela dela.

Do lado de fora, Calisto conseguia ouvi-la lutando como se quisesse se soltar, a respiração sôfrega, e a fricção inconfundível de um corpo contra o outro. O quarto crescente da lua iluminou seu caminho, e finalmente conseguiu alcançar a outra janela.

O que Calisto viu dentro do quarto fez seu sangue ferver. A poltrona estava ao lado da porta, a cama estava intocada e, como na pior das previsões de Hemétria, Violante estava imobilizada debaixo de Silvestre, pressionada contra o chão.

Fora daqui, quis dizer, mas tudo que saiu de sua boca foi um rosnado. Seus lábios se curvaram, mostrando presas, e as mãos pareceram garras cobertas de cabelo acastanhado.

— Sai de perto da minha irmã! — Calisto pulou sobre eles e lançou Silvestre contra o guarda-roupa com força sobre-humana. Ela não, ela não, gritava uma voz dentro de sua cabeça, mas ainda estava preso dentro do lobo, sentindo o cheiro do medo de Violante, o cheiro do desejo de Silvestre, o orvalho no mato, o sangue em seus dentes.

Calisto queria salvá-la, mas as próprias mãos—mãos de gente—tremiam, substituindo as garras que deveriam estar ali.

— Violante… — O corpo dela estava esparramado no tapete, e o chão estava coberto com os botões de pérola e os fragmentos do vestido branco, rasgado por uma fera que não  ele.

Ela olhou para ele, assustada, cobrindo os seios à mostra. Calisto virou-se para Silvestre, caído sob as pesadas gavetas, ainda segurando em seu punho um pedaço de renda branca. Outro rosnado, e o lobo guará voltou a emergir.

Calisto ergueu o tio pela gola da camisa, e arremessou na direção do corredor.

— Se tu tocar mais uma vez nela, eu te mato.

 

I:

UM CORAÇÃO EM CHAMAS

 

Violante olhou para sua pele amarela e pálida, admirando a leve diferença de cor entre a palma e o cós da mão, uma versão diluída da mãe e do irmão. Tinha arranhões no peito, onde Tío Silvestre tinha rasgado o vestido e as roupas de baixo, e seus antebraços estavam marcados pelos dedos dele.

A mãe não gostava que usasse espartilhos ou anáguas embaixo das saias por não gostar de sua figura; era cheia demais nos lugares errados, nos seios, nos quadris, não da forma que mulheres ricas gostavam de imitar, mas da forma que Cesária dizia parecer com escravas e prostitutas.

— É vulgar, é isto que é — tinha dito, torcendo o nariz como se a filha fosse repulsiva. Lutava para encontrar vestidos que não mostrassem nada disso, que a deixassem elegante como uma francesa. — Tu precisa te cobrir mais.

De certa forma, Violante queria ter se coberto mais naquela noite de 1891, queria que as camadas de tecido fossem mais difíceis de rasgar.

Passou o resto da noite acordada, deitada na cama. Calisto dormiu lá também, no chão, segurando sua mão. Ao amanhecer, ele voltou para seu quarto pela janela, e Violante fingiu dormir, esperando Cesária aparecer.

Mas a mãe nunca veio. Teve que se vestir sozinha, pentear o próprio cabelo e descer a escadaria. Todos tomavam café da manhã em silêncio, sem olhar para ela.

Eles sabem, Violante pensou, sentindo um ódio gelado tomar conta de seu corpo. Não tem como não saberem.

— Pára com isso! — Cesária gritou, e Violante olhou para baixo. Sem notar, tinha destruído o pão com as mãos.

Os olhos de Violante seguiam glaciais, mas suas estranhas queimavam por dentro. Não obedeceu a mãe; apenas jogou o conteúdo do prato na mesa, chutou a cadeira e saiu.

— Mas a senhorita vai voltar aqui agora mesmo!

— Vai pro inferno — Violante respondeu, andando mais rápido. Por um segundo, se achou muito parecida com Tía Hemétria, e o pensamento a enojou.

Tirou as botas e as deixou na entrada da Estancia de los Espinos. Sentiu a grama sob os pés, quente e iluminada, úmida, suave, de uma forma que não lembrava mais de já ter sentido.

Por anos, o galpão campeiro estivera fora de seu alcance. Havia um mistério cercando aquelas paredes, e tinha certeza que era este o motivo pelo qual Cesária deixara sua porta aberta: pelo confronto que tiveram quando perguntou o que fazia com o irmão ali dentro.

— Ei — chamou alguém. Violante se virou para ver Calisto, que parecia ter corrido até ela.

— Não foi minha intenção fazer um escândalo.

Calisto sorriu de orelha a orelha. Fios de cabelo preto caíam de seu rabo de cavalo, chegando até os ombros.

— Que pena que tu não viu a cara que eles fizeram — disse. — Foi muy engraçado.

Violante sorriu de volta. Depois, ergueu o rosto para vê-lo melhor.

— Calisto… O que a mãe faz contigo nesse lugar?

As paredes do galpão tinham marcas de garra, e alguns pilares tinham sido mordidos uma e outra vez. Não só isso, tinha também os uivos incessantes que ouvia em algumas noites, e as sombras da madrugada anterior rodopiando e mudando.

— Tem coisas que não podem ser explicadas.

— Eu sei o que vi. Tío Silvestre viu também.

— Violante…

— Eu só queria que tu admitisse.

O irmão suspirou.

— Eu vou contar tudo que tu quiser saber. Mas tu vai fazer o mesmo, é só isso que peço.

E foi o que fizeram. Na semana seguinte, compartilharam tudo que não puderam contar um ao outro nos últimos oito anos. Calisto falou da maldição e do pai que não conhecera. Falou sobre Cesária, sobre Hemétria, sobre a raiva cujas sementes tinham florescido dentro dele. Em troca, Violante contou como era ser observada e mandada a todo momento. Dos olhos famintos de Silvestre, de como ele tentava abrir a porta todas as noites desde que tinha feito dez anos, de como estava sempre ao seu lado, tentando tocá-la.

À noite, Calisto ia até o quarto dela pela janela, e dormia no lado oposto da cama. Os pés dele batiam contra a parede, perto de sua cabeça, e suas meias delicadas faziam cócegas no braço do irmão.

— Eu senti tanta saudade — Violante admitiu antes de dormir. — Todos os dias eu rezava pra que pudéssemos falar de novo.

Ninguém os interrompeu, já que ninguém parecia notar que eles existiam naqueles dias. A mãe não tinha perdoado o comportamento de Violante. Silvestre ficara acovardado depois de ver o lobo. E o pai não se importava.

Foi só no sábado seguinte que a paz acabou, quando Ezequiel e Hemétria chegaram em uma carroça, conversando e rindo em voz alta.

— Vai te vestir. — Cesária apareceu em seu quarto, refletida no espelho da penteadeira. — E arruma esse cabelo. Tu não é mais criança.

— Mais tarde — Violante respondeu, a voz sem nenhum traço de emoção. As mãos pequenas brincavam com os cachos, cobrindo peito e ombros com eles.

Cesária inflou as narinas.

— Não sei o que deu em ti! Deixei que continuasse sem modos por uma semana, achando que tu voltaria ao normal… — Ela abriu a porta do armário, e começou a puxar para fora os vestidos da filha.

Violante correu para impedi-la, segurando os pulsos da mãe.

— Eu cansei de ser tratada assim! — Violante cuspiu. — Como se eu fosse parte da mobília, ou um dos seus vestidos, da prataria que tu pode usar e limpar de novo!

— Como que tu ousa falar desse jeito comigo? — Os lábios de Cesária se crisparam. Violante teve menos medo de Calisto rosnando na escuridão do que da mãe salivando daquele jeito. — Eu te fiz, eu te alimentei… Eu lutei contra o teu pai, contra todos, pra não deixar que tu virasse o mesmo que eu… Que tu não virasse o que minha mãe virou antes de mim, cercada de crianças pedindo por mais, trancada em uma casa, trabalhando para sobreviver!

Cesária agarrou o rosto dela, enfiando as unhas na pele de Violante.

— Guriazinha ingrata! Ingrata porque não sabe como minha vida era antes de casar, como minha vida foi desde então! — O rosto de Violante doía, assim como seu corpo inteiro, desde aquela vez. — Mas não vou deixar essa teimosia toda te arruinar. Tu vai fazer o que eu mandar, e tu vai trabalhar, não vai ser a parideira de ninguém, eu não vou deixar!

Violante empurrou a mãe com toda a força que tinha. Não era tão forte quanto Tío Silvestre, que conseguiu prendê-la no chão, nem tão forte como Calisto, que o lançou para longe como se não pesasse nada, nem forte como a criatura cujos dentes conseguiam destroçar pilares, mas foi o suficiente para fazer Cesária tropeçar e parar de arranhar suas bochechas.

— Eu não vou viver por ti, e o Calisto também não vai — murmurou Violante com o queixo tremendo. Abriu a última gaveta do armário, e puxou o vestido rasgado, jogando-o na cara de Cesária. — Se estivesse tão preocupada com o que pode acontecer comigo, mãe, teria se importado com isto também.

Cesária olhou para o vestido, para os botões que faltavam, para a renda desfeita.

— O que foi que tu fez?

— Pergunta pro Tío Silvestre. — Violante abriu um sorriso impiedoso. — Procura no saco que ele carrega, mãe, eu não duvidaria que o resto do meu vestido estivesse lá.

Violante não achou que Cesária reagiria tão rápido. A mulher correu até o quarto de Silvestre, e Violante correu atrás dela, mas era tarde demais. As duas estavam lá.

— Mãe, espera…

— Eu vou encontrar — prometeu Cesária. — E se tu ficar prenha, eu me livro da criança.

— Mãe, não, por favor…

Mas Cesária não parou. Quando encontrou o saco, jogou os conteúdos sobre a cama.

O que encontraram lá deixou mãe e filha perturbadas. Além dos pertences de Silvestre, o saco também escondia outros objetos, como:

Um — o fragmento que faltava do vestido de Violante.

Dois — um bracelete de ouro com as iniciais H. B. G.

Três — um colar verde-esmeralda.

Violante olhou para Cesária, que tinha empalidecido.

— Eu… — Ela segurou o colar como se fosse um recém-nascido, e ficou de costas para Violante. — Eu preciso…

Cesária deixou o quarto de Silvestre, mas Violante não foi atrás dela. Em vez disso, procurou o irmão, que lia no galpão.

— Calisto — chamou Violante, ofegando. Ele fechou o livro em suas pernas e olhou para ela, confuso.

— O que aconteceu com teu rosto? Foi o tio…?

— Não, a mãe… Eu não sei o que aconteceu. — Agora que não se sentia mais acuada, seus olhos se encheram de lágrimas. — Eu preciso ir embora. Eu não suporto mais viver aqui. Eu preciso, logo…

Calisto ficou de pé e segurou as mãos dela.

— Violante, fica acalma.

— Se eu fosse, tu iria comigo? Eu esperaria a cada lua cheia. Se tu estiver com forme, pode me devorar, eu não me importo.

Violante chorou, os cachos pretos cobrindo a camisola que ia até os tornozelos, as lágrimas parecendo gotas de chuva caindo sobre as mãos de Calisto. Ele tocou no rosto dela, na cabeça, no cabelo.

— Eu iria pra qualquer lugar — disse. — Vou morrer se continuar aqui.

Os dois trocaram olhares, e a voz de Violante ficou mais firme.

— Hoje é lua cheia. Eu posso te soltar do galpão. Se eu conseguir a chave do pescoço do Ezequiel, e nós pegarmos os cavalos enquanto eles dormem…

— Chave?

— A chave do cofre — Violante sussurrou. — O cofre da família. Ele tem documentos falsos, nós podemos ir para outro estado…

— Se pudermos mudar de nome, não vamos ser mais família. — Calisto a levou pela mão para saírem dali, caso alguém aparecesse. — Se nós casarmos, eu posso te proteger.

— Eu não confiaria em nenhum outro homem.

— Nem eu em outra mulher — ele respondeu.

Violante apertou os dedos de Calisto, e fez que sim com a cabeça. Calisto se agachou para beijar a testa dela.

— Hoje à noite.

— Se cuida.

Calisto guardou tudo que poderia precisar em uma carroça, e Violante fez o mesmo. Ela conseguiu dinheiro no escritório de Apolinário, e escondeu as moedas na roupa de baixo. Ele encontrou um mapa com o endereço de Ezequiel em Porto Alegre, e o desenhou em seu diário. Ela roubou comida da cozinha para que tivessem suprimentos para a viagem.

Calisto foi até o quarto de Cesária.

— Mãe, não precisa se preocupar comigo. Hoje vou sozinho até o galpão.

Cesária não respondeu.

Violante beijou-lhe as mãos antes dele partir no fim da tarde.

— É uma promessa — os dois disseram.

À noite, a família Barandirán se reuniu para jantar no andar de baixo. Apolinário sentou na ponta da mesa; Hemétria sentou no canto; Silvestre sentou entre os dois irmãos, do lado contrário da cunhada; Violante sentou à direita da mãe.

Buenas, agora que estamos todos reunidos, eu queria contar as novidades! — Ezequiel começou a falar antes de comerem. — É uma pena que o Calisto não esteja se sentindo bem; c’est la vie! Contamos os pormenores amanhã.

Cesária não falava com ninguém; havia um quê agressivo em seu rosto. Hemétria alargou o sorriso desagradável, e Violante segurou o garfo no ar, sem tocar na comida.

— Nossa querida Violante agora é noiva! — Ezequiel exclamou, ficando de pé. — Ele é um homem maduro, responsável, e juntar as duas famílias seria ótimo para os negócios! Além do mais, ele sabe da sua… Linhagem, e não vê problema nenhum nisso… Ao contrário, já ouviu falar do branqueamento racial? Ele acredita que, com a mestiçagem, nós podemos clarear a raça, e fazer crianças melhores que, um dia, voltam a ser europeias!

Violante sentiu-se como uma taça de cristal no canto de uma mesa que alguém tinha esbarrado e estatelado contra o chão, quebrada em milhares de pedaços. Sua mente estava vazia, seu rosto estava sem cor, seus braços caíram ao seu lado.

Quê? — Cesária, que não tinha falado nada até então, pareceu acordar depois de ouvir essas palavras.

— Cesária amada, eu pretendia te contar mais cedo… — Ezequiel tentou sorrir. — O Apolinário concorda que é a escolha ideal.

Calisto, Violante queria chamá-lo. Eu preciso do Calisto.

— Não vai casar minha filha com um velho decrépito — disse Cesária. — Não vou deixar!

— Ezequiel — Silvestre interveio, afagando o bigode grisalho e pesado sobre sua boca. — Não acha que é cedo demais para casar a guria?

Violante ergueu o rosto para encará-lo. O tio era alto, e a pele mediterrânea estava rosada pelo vinho, o nariz era grande e bulboso, e o olhos verdes pareciam afundados no crânio comprido. Ele olhou de volta, mas quem respondeu não foi Violante, e sim Cesária, mais uma vez:

Tu! Seu ladrãozinho maldito, quem tu acha que é para falar da minha filha? — Cesária espumava como um cachorro selvagem, e puxou o colar do bolso da saia preta, sacudindo-o no ar. — O que isto estava fazendo nas tuas coisas?

— Silvestre? — Ezequiel balbuciou.

— O presente de casamento da minha mãe! — Cesária esbravejou. — O presente que eu achei ter sido roubado dezoito anos atrás…! Eu aceitei sua depravação por tempo demais, Silvestre, mas agora acabou!

Silvestre levantou as sobrancelhas pesadas.

— E tu, mulher, tu, que não esperou nem uma semana de casada pra deitar com o caboclo?

A risada de Hemétria era o único som na sala.

— Cesária? — O rosto rechonchudo de Ezequiel estava confuso. — Apolinário, tu sabia uma coisa dessas?

— Nós resolvemos muito tempo atrás — Apolinário deu de ombros. — Silvestre teve que matar o guri.

O quê? — Cesária puxou Apolinário pela gola da camisa, e arregalou os olhos. — Vocês mataram o pai do meu filho?

— E a meretriz admite! — Hemétria aplaudiu.

Violante olhou para ela. Agora, sabia o que tinha que fazer.

— Nós não encontramos só o colar da mãe, Tía Hemétria — disse Violante em voz baixa. — Também encontramos o meu vestido e uma pulseira sua. Ah, e Tío Ezequiel, talvez seja hora de cancelar o casório. Diga ao meu noivo que já fui arruinada.

Ela deu de costas para a família, e foi até a porta da frente. Atrás, ouvia os gritos, mas Violante não parou até tocar na maçaneta da porta.

O lobo entrou assim que ela a abriu.

 

A:

UM CAMPO DE ESPINILLOS

 

Apolinário Barandirán García deveria ter imaginado que morreria dessa maneira. Fez pouca coisa durante a vida; dedicava a maior parte do seu esforço não a trabalhar, já que era medíocre nos negócios, nem à esposa, com quem raramente conversava, mas em se preocupar o mínimo possível. Deixava que Cesária cuidasse das crianças, Ezequiel lidasse com o dinheiro, Silvestre resolvesse os problemas.

Então, quando Violante correu até a porta, e uma besta gigante entrou atrás dela, ele só observou em silêncio.

— O que é aquilo? — Ezequiel guinchou, escondendo-se atrás de uma cadeira. — Silvestre, faz alguma coisa!

O lobo guará olhou primeiro para Violante, como se a reconhecesse. Ele a cheirou, e a menina olhou para seus olhos pretos, tocando o focinho comprido. Depois disso, os dois se viraram para o resto da família, e o lobo começou a uivar.

Seguiu-se um pandemônio: gritos, correria, a fera tentando rasgar os móveis e morder as cadeiras. Ezequiel alcançou o candelabro, tentando queimar o bicho, mas acabou pondo fogo na mesa. Silvestre tentou pará-lo, mas era tarde demais, e o fogo espalhou-se para as cortinas.

— Calisto, pára! — Cesária ordenou, mas o lobo não ouvia. Ele mordeu a perna de Silvestre, jogando-o contra o chão. — Calisto!

— Calisto?! — Hemétria berrou. — O que quer dizer com isso?

— Vai pegar a chave. — Violante apontou para onde Ezequiel tinha corrido, e a criatura obedeceu. — E não machuque as criadas.

Apolinário nada disse, e Violante se foi sem olhar para ele. Conseguia ouvir todas as reclamações, mas o pranto de Cesária era mais alto que qualquer um deles.

— Assis… Assis… Meu amor, pode vir, estou esperando…

Logo, não havia nada além de fumaça e chamas. Apolinário também deveria ter esperado arder até a morte, já que a casa de sua família estava cercada das árvores mais inflamáveis da América do Sul.

— Assis… — Cesária chorou, e o lobo apareceu mais uma vez.

Ele segurou a mulher pelo braço com as presas, tentando arrastá-la para fora da casa. Cesária sacudiu a cabeça.

— Não, não, Calisto… Deixa ele me levar para onde eu já deveria estar…

Calisto insistiu, mas ela esbofeteou o lobo.

— Não me toca, seu animal — Cesária soluçou. — Salva a ti mesmo!

Do lado de fora, o lobo correu em duas pernas em direção à irmã, humano novamente mesmo sob a luz da lua. Os dois deram as mãos diante do portão de ferro da Estancia de los Espinos, onde uma carroça com dois cavalos os aguardava.

Apolinário suspirou, engasgando, e olhou para os talheres de prata, decidindo que já era hora de terminar a janta.

 



H. Pueyo is a Brazilian writer of comics and speculative fiction. Her work has been published before in English and Portuguese by magazines such as Clarkesworld, The Dark and Trasgo, among others. Find her online at hachepueyo.com, and @hachepueyo on Twitter.