-- 1 --
Nasci de uma carpinteira com mãos trêmulas nos fundos de uma serraria. Seu nome era Anatólia. Havia dias em que ela serrava alguma parte de meu corpo para consertar alguma falha. Em outros, arremessava meus pedaços contra a parede, esbravejando para a mobília tímida que ela mesma construíra. Se soubesse que havia me outorgado consciência através de sua arte, talvez pensasse diferente. Eu não me importava. Anatólia era tenaz e cuidadosa, e ignorava os reclames de seu filho, que insistia que ela não tinha mais idade para aquele tipo de trabalho pesado. Fazia bem em ignorar. Madeira de carvalho sobrevivia por milênios. Anatólia possuía apenas algumas dúzias de dobras nas bochechas e os olhos clareados. Seu jeito todo particular de arquejar não significava nada. Tinha bastante tempo pela frente.
Ignorando toda a modéstia engastada em minha madeira pelas mãos daquela senhora carpinteira, eu podia afirmar que era uma verdadeira obra de arte. Cavalos-marinhos adornavam as palmetas no topo do meu encosto que, por sua vez, era ornamentado com bolhas e o contorno de peixes. As conchas de marisco ao redor do meu assento e as flores-de-lótus em meus quatro pés me davam um toque de sofisticação. Os detalhes eram tão primorosamente trabalhados que temia o dia em que alguém me empurraria contra outros camaradas de madeira. Meu assento estofado era de um carmesim aveludado, não muito diferente dos olhos do filho de Anatólia no dia em que ele entrou na serraria. Foi o dia que tomei meu primeiro banho de sol. O dia que descobri coisas que não desejava.
Mas, vamos por partes. Isso aconteceu duas semanas após Anatólia suspirar e murmurar palavras misteriosas e edificantes próximo a mim. A carpinteira se sentara em um dos meus parceiros, um banquinho bambo e sem consciência. Respirando daquela forma toda dela, barulhenta e ofegante, Anatólia disse:
— Ela vai amar você.
Minhas farpas se eriçaram. Quem seria “ela”? Eu perguntaria se tivesse uma boca. Anatólia foi embora após alguns minutos de cochilo com as mãos apoiadas nos joelhos, como se hipnotizada por um pensamento um tanto quanto volumoso.
Foi a última vez que a vi.
Quando o filho de Anatólia me trouxe para fora da serraria pela primeira vez, ele chorava, assim como meia dúzia de outras pessoas, todas reunidas e se abraçando na varandinha de uma casa pintada com tinta verde descamada. Um caminhão branco com luzes vermelhas estacionou no caminho de cascalho. O pacote comprido que foi levado até ele cheirava a serragem e café.
Cada pedacinho dentro de mim se deformou e inchou infimamente quando a luz do sol me tocou. Por coincidência, foi bem no momento que percebi o fim de minha carpinteira. Para a minha infelicidade, ela não era feita de carvalho como eu, mas de uma estrutura mais fraca e menos resistente chamada osso.
— Pode ficar com elas — o filho de Anatólia disse para Tia Suzana como se eu não tivesse escutando. Apontava para mim e para outras mobílias. — Preciso me mudar em breve.
Seria Tia Suzana a pessoa que me amaria?
-- 2 --
Tia Suzana me enfiou na mala de sua caminhonete. Fiquei lá por um tempo, até que ela decidiu me vender para uma filial da Sonho & Construção perto de um restaurante na BR-116. Naquela época, eu não tinha muita noção de que R$100 era um valor bastante inadequado para manter minha dignidade e valorizar todo o suor que Anatólia deixara pingar em mim. A ignorância é uma benção. Provavelmente, as duas notas de cinquenta serviram para pagar o jantar caro de Tia Suzana naquela mesma noite. Merecidamente, ela deixa a história a partir de agora.
A vida na Sonho & Construção não era como eu imaginara. E foi assim que os anos sombrios começaram. Literalmente. João Gustavo, o gerente, decidiu me deixar em um canto onde o sol nunca batia. Com Anatólia já mais distante na memória, comecei a ansiar por aquelas faixas luminosas que cortavam a entrada principal da Sonho & Construção e realçavam os grãos de poeira no ar. Uma plaquinha foi colocada em mim, com o número “200”, mas eu não pensava muito nos números de Tia Suzana e João Gustavo. Não faziam sentido, nem eu queria que fizessem. Minha preocupação era se a plaquinha ficaria tempo demais no meu assento, o que poderia acabar marcando-o com um retângulo bastante indelicado.
Aqueles também foram os anos sombrios metaforicamente. Minha rotina estava limitada a apoiar nádegas indiferentes durante o dia e sentir o odor umedecido de meus colegas sem consciência à noite. João Gustavo parecia não se importar que fediam. Que nós fedíamos. Gabava-se com números, digitava em computadores e fazia caretas de insatisfação para seus subordinados. Era um pouco como Tia Suzana. Ou como o filho de Anatólia. Incapazes de amar algo manufaturado de forma tão sublime por mãos tão mágicas quanto os feixes de luz que nos davam bom-dia pela porta.
Certa manhã, as coisas mudaram, uns dois anos após Tia Suzana me abandonar. Chuviscava no toldo da Sonho & Construção e a luz do sol sequer passava através do vidro. Era oito da manhã de uma quinta-feira e a placa de FECHADO ainda estava pendurada na porta. Estavam atrasados para abrir a loja. Mesmo assim, João Gustavo sequer se movimentava para deixar sua mesa. Passados mais dez minutos, ele me assustou com um grito:
— Ele vai vir! Todos à postos!
Seu berro foi recebido por Obas e exclamações de seus subordinados (ainda que alguns parececem fingidos).
Todos se juntaram, conversaram por cerca de dez minutos e entraram em um frenesi. Banharam panos em detergente, torceram, limparam cada grão de poeira do chão, das camas, armários, cristaleiras, guarda-roupas e mesas, esfregando até mesmo os cantos inacessíveis da loja. Quando chegou a minha vez, me fizeram cócegas com um espanador, enceraram todo o meu corpo e enxaguaram meu assento com óleo de peroba e água. Até mesmo conseguiram remover o retângulo do meu estofado de veludo. No fim, me senti menos seca e quebradiça, um pouco mais como Anatólia pretendia que eu fosse.
E agora? Talvez João Gustavo e seus subordinados tenham descoberto sobre Anatólia e decidiram ir atrás de quem me amaria, a Escolhida, a pessoa ideal no mundo inteiro para quem uma cadeira refinada como eu seria concedida. Uma marinheira, talvez? Uma pescadora? Todo aquele espetáculo de limpeza tinha de ser uma festa de boas-vindas.
A pessoa que entrou na Sonho & Construção não tinha nada a ver com o que eu imaginara da frase enigmática de Anatólia. Era um homem com um cavanhaque grisalho. Vestia um suéter cinza com um blazer verde escuro, elegante e um pouco surrado. Seu cabelo era colado na cabeça com algum tipo de gel que deixava algumas pontas para a esquerda. Fechou o guarda-chuva e cerrou os olhos para a mobília ao redor como se tivesse algo a confessar.
— Sr. Amorim, é tão bom ver o senhor aqui. — A voz de João Gustavo era mais falsa que imitação de veludo. — O senhor se importa se trouxermos um cafezinho e algumas guloseimas?
O sr. Amorim resmungou e balançou a cabeça.
— Que escolha ruim de palavras — disse ele, apontando para a porta. — Aquele adesivo diz Queima de Estoque. Podiam pensar num termo melhor.
João Gustavo estremeceu e estalou os dedos. Gotículas brilhantes de suor brilharam em sua testa.
— Então o senhor acha que nossos preços não são bons? Podemos…
O sr. Amorim fez um gesto com a mão.
— Nada… É só que vocês estão associando mobília com fogo. É um mau agouro, eu acho.
João Gustavo assentiu, seus ombros caindo, provavelmente aliviado por ser apenas um detalhe. Nada a ver com seus números.
— Podemos lhe mostrar o que temos de melhor. — Fez um gesto completamente falso de boas vindas, abrindo as mãos e estendendo os braços para exibir os produtos da Sonho & Construção — que já estavam visíveis, obviamente. — O senhor é um homem inteligente, então talvez aquela estante de livros possa…
O sr. Amorim levantou uma mão. Parecia saber exatamente como continuar no controle da situação.
— Quero renovar a casa pra Joana.
— Ela vai voltar? — João Gustavo sorriu.
— Sim, depois de seis anos no exterior. Bom… Eu tenho uma lista aqui. — Ele puxou um pedaço de papel amarelado do bolso e entregou a João, cujos olhos cintilavam conforme lia os itens.
João acenou para seus subordinados e eles começaram a ziguezaguear pela loja, digitando, trocando sorrisos e prendendo plaquinhas de VENDIDO em algumas companheiras.
Enquanto isso, o sr. Amorim vagou pela loja com seu jeitinho curioso, deslizando dedos sobre minhas colegas e cutucando portas de vidro sem abri-las. Quando se aproximou de mim, a primeira coisa que fez não foi apertar meu assento aveludado como a maioria das pessoas fazia. Sorriu para minhas conchas de marisco e pressionou dois dedos nos cavalos-marinhos em meu encosto. Seu dedão era rugoso, cheio de fiapos invisíveis do blazer, as unhas bastante aparadas. Senti um leve aroma antiquado de cedro e guariúba, o que me fez recordar de Anatólia.
— Hmm… — foi tudo que o homem disse.
De repente, suas costas fizeram sombra e se agigantaram sobre mim. Cerrei todas as minhas farpas. Um comichão percorreu meu veludo.
Sentou-se em mim. Eu rangi (de forma ligeira e educada, claro).
— Sr. João, por favor, venha aqui. — O sr. Amorim levantou uma mão, sua voz vibrando pela minha madeira. — Vou levar esta também. E tenho um pedido especial relacionado aos móveis que estou comprando. Vocês têm um carpinteiro que trabalha aqui?
E foi assim que os anos sombrios terminaram, da mesma forma que começaram, na traseira escura de um caminhão.
-- 3 --
Fui promovida a líder assim que me colocaram na sala de estar dos Amorim. De uma serraria para o canto escuro de uma loja até finalmente chegar na cabeceira de minha própria mesa. Fiquei ligeiramente orgulhosa, admito. Liderava um conjunto de cinco cadeiras de mogno, todas adquiridas na Sonho & Construção e personalizadas de acordo com o pedido do sr. Amorim: frutas e pomares foram talhados nos encostos das cadeiras e nas bordas da mesa. Longe da perfeição das minhas conchas de marisco e de meus cavalos-marinhos, óbvio. As mãos da equipe de João Gustavo eram mais adaptadas para números que carpintaria. (As cadeiras tinham seu charme, admito, só não tanto quanto o meu.)
A temática de frutas parecia agradar os Amorim. A sala de estar continha uma coleção de dez pinturas a óleo representando pomares e cestos de fruta, árvores e plantações, mulheres e homens trabalhando no campo. Todos os quadros ficavam pendurados em meio ao restante da mobília encostada nas paredes: uma cristaleira, uma estante de livros, um relógio inglês de pêndulo e um sofá coberto com uma capa. À direita da entrada principal, a sala de estar se abria para um espaço com um rack de televisão, mas ele já estava além do meu campo de visão, então eu só o enxergava quando me moviam pela casa.
Acho pertinente adicionar uma observação: havia uma janela, logo atrás de onde eu ficava, com maquiagem de madeira — verniz — cuidadosamente aplicada em seu batente para ocultar sua verdadeira idade. Toda manhã, logo antes do relógio badalar sete horas, o sr. Amorim acordava e seus chinelos faziam a escada ranger. Puxava as cortinas e abria a janela, deixando o sopro do gramado do quintal invadir a casa. E a luz do sol. Os raios graciosos que corriam daquela grande bolota no céu finalmente passaram a encostar em mim, dia após dia, de sete às dez, agitando e aquecendo as rebarbas de meu carvalho.
Logo descobri que apenas dois Amorim moravam no casarão. Eduardo Amorim, que você já deve conhecer como sr. Amorim, e Leandro Amorim, um rapaz de quinze anos que parecia ser parte de um sistema que consistia de um fone de ouvido e uma camisa acinzentada do Metallica. Leandro era neto do sr. Amorim, e seus pais haviam falecido quando Leandro era um bebê. Joana Amorim era a irmã de Leandro e a pessoa que o sr. Amorim mencionara na Sonho & Construção, a quem aqueles móveis pretendiam agradar. Ela não morava com os dois, mas pretendia passar dois meses no casarão após um ano morando no exterior. Seria ela a pessoa a me amar? O pensamento arranhou meu carvalho conforme o primeiro dia no lar dos Amorim se converteu em um azul escurecido e as pinturas na parede em meros quadros negros.
Certa manhã (na verdade uma bem específica que nunca saiu de minha memória), sete dias após eu chegar na casa, a voz firme do sr. Amorim me despertou do meu torpor de carvalho.
— Ajude sua irmã, Leandro. — Sua voz vibrava pela minha madeira. O sr. Amorim estava próximo a porta. — Ela está cansada da viagem.
— Tô indo, tô indo. — Leandro revirou os olhos, disparando escada abaixo. — Também tô cansado, tá? Não são nem dez horas.
O sr. Amorim deu uma olhadela ansiosa pelo postigo enquanto girava a chave na maçaneta. Um sorriso hesitante preencheu seu rosto.
— Ela chegou antes — murmurou para si. — Devia ter pensando em uma roupa melhor. — Ele vestia um casaco preto e as mesmas calças de linho que usara quando me adquiriu. Eu achava uma escolha bastante garbosa, mas como uma cadeira nua poderia opinar?
O sr. Amorim saiu, Leandro logo atrás.
(E aqui devo fazer uma pausa para explicar um detalhe sobre mãos mágicas. Seria maravilhoso se elas também dessem a benção das pernas às mobílias. Eu as usaria naquele momento para seguir a dupla até o lado de fora e ver a chegada de Joana, a mulher que podia ou não me amar. Mas, não. Eu não tinha como me mover, mesmo tendo a mesma quantidade de pernas de um cachorro.)
Fui capaz de ouvir a voz do sr. Amorim do lado de fora. Naquele instante, descobri o que significava a felicidade. Era aquele tom meio entusiasmado, um pouco mais agudo que o normal, mesmo que abafado e indistinguível em meio ao motor do carro. Era o arranjo diferente das covinhas ao lado das bochechas do sr. Amorim quando ele retornou carregando uma mala azul cheia de adesivos. Era o jeito que ele a colocou no chão, rápido, mas cuidadoso, apenas para poder olhar novamente para o lado de fora.
Leandro entrou em seguida, carregando uma mochila abarrotada.
Depois veio Joana, com grandes olheiras e a boca curvada para baixo, o cabelo negro preso em um coque. Cheirava a assentos de couro. Era diferente dos outros Amorim. Na casa dos trinta e pouco, Joana não possuía o olhar analítico e sofisticado do avô. Era o tipo de criatura de osso que parecia ter deixado bastante coisa para trás. Até mais que o próprio sr. Amorim, apesar da idade. A questão que permanecia no ar era se ela deixara uma parte dela em algum lugar ou em algum momento.
Na hora que Joana fechou a porta, aguardei seus olhos brilharem com a percepção do que seu avô fizera: a personalização da mobília, as maçãs e laranjas — interessantes apesar de imperfeitas — esculpidas nos encostos das minhas colegas, a suavidade da mesa de mogno onde o sr. Amorim colocara dois candelabros dourados e Leandro deixara um CD chamado Master of Puppets. E eu, claro, diante da janela, escondida por causa da mesa, mas exibindo cavalos-marinhos e peixes saltando de um lago imaginário, os detalhes nos olhos dos animais entalhados com a mais profunda inspiração. Pude ver nos olhos do sr. Amorim que ele tinha as mesmas expectativas.
Joana observou a sala.
— Sua casa tá… — Ela franziu o rosto. — Tá cheirando que nem árvore.
Meu assento se estufou alguns micrômetros. Árvores? Sério? Então vocês cheiram a carne!
— Vamos levar suas coisas lá pra cima — disse o sr. Amorim, os lábios estremecendo. — Seu quarto está do jeito que deixou.
— Eu vou ficar por dois meses, Eduardo. — Na época, eu não sabia dizer se sua rispidez era cansaço da longa viagem ou se era seu jeito. — Estou aqui só para saber se você e Leandro estão bem.
Joana pegou a mochila, despenteou o cabelo de Leandro e subiu as escadas. O sr. Amorim esfregou as mãos e olhou para cima, palavras não ditas se ensaiando em seus lábios. Até mesmo Leandro desviou os olhos do smartphone e pausou o que quer que estivesse brocando em seus ouvidos. Durante os anos seguintes, eu conheceria e acomodaria os traseiros de muitos dos convidados dos Amorim. A prima Morena; Jorge, o irmão de Eduardo; as namoradas de Leandro, depois os namorados; duas namoradas do sr. Amorim; Jacir, o carteiro de rabo de cavalo; e até alguns cachorros felizardos, balançando seus rabinhos. E nenhum desses seres teve uma recepção tão calorosa quanto a que os Amorim deram para Joana, e nenhum deles jamais respondeu de maneira tão apática.
Joana sequer deu uma espiada em minhas curvas!
Os dias passaram, como é do feitio deles. Eu podia dizer que a residência dos Amorim foi a minha primeira. A serraria não podia ser chamada de lar porque eu estava apenas sendo montada. Muito menos o canto sombreado e empoeirado da Sonho & Construção. Mas com os Amorim era diferente. Meus arredores ganharam vida.
O sr. Amorim — creio que possa chamá-lo de Eduardo a esta altura — preparava café da manhã todo dia para seus netos (e algumas vezes para mim, quando Leandro deixava cair uma torrada com manteiga em meu assento — e você provavelmente sabe a respeito das regras que regem torradas com manteiga). O café consistia de pão, manteiga, queijo prato, bolo de cenoura, pudim de doce de leite, suco de laranja e iogurte de abacaxi, o último especialmente para Joana. Mas ela não se importava com todo o esforço que Eduardo despendia para agradá-la, os minutos que passava perscrutando a gaveta da cristaleira, procurando uma toalha bonita, o alarme que colocava na geladeira para servir o iogurte na temperatura ideal, aquelas covinhas e aqueles olhos cintilantes formando insinuações de sorriso.
Nos dias de semana, um ônibus escolar buscava Leandro logo após o café da manhã. O rapaz estava no Ensino Médio, no estágio em que adolescentes absorviam tudo ao redor e canalizavam em empolgação, frustração e acne. E era nos enormes intervalos entre Leandro sair e voltar da escola que Eduardo tentava penetrar a barreira misteriosa de Joana.
— Eu não sei o título da sua tese — disse Eduardo, três dias após a chegada de Joana. Estavam sentados de frente um para o outro na mesa. (Eduardo jamais se sentava em mim e, normalmente, deixava os netos me escolherem se assim quisessem. Mesmo sozinho, poupava o meu assento de seu traseiro.) — Eu sei que tem a ver com peixe.
Ah! Aquele podia ser o motivo pelo qual fui escolhida.
— Peixes… — Joana curvou os lábios. — Está simplificando demais.
Eduardo deu de ombros.
— Você não telefonava muito quando estava lá.
— É sobre os padrões dos peixes de água salgada da Península Ibérica.
— Parece interessante. — Eduardo genuinamente queria saber mais. Dava para ver na forma como se curvava na mesa, os olhos brilhando. Era como se tivesse acabado de descobrir que tinha uma neta. — Eu nem sabia que eles tinham padrões.
— Tudo tem um padrão. — Os olhos de Joana nunca encontravam os dele. — Na natureza.
— E Portugal? É bom lá?
Joana simplesmente assentiu.
— Essa nova mobília… — Olhou em volta, um fiapo de escárnio no gesto. — Pra que isso?
É pra você, então faça o favor de ficar feliz, eu queria dizer. Olhe meus cavalos-marinhos e essas bolhinhas estourando ao redor deles, e os peixinhos entrelaçados com elas.
— Eu sei que você gosta de carpintaria. — Eduardo olhou pela sala. Suas mãos tremiam de leve. — Eu queria revitalizar a casa, sabe? Renovar. Checar a fiação também, e ver se os extintores estão funcionando bem. Acho que o que tem na despensa pode estar perto de expirar e…
— Então você simplesmente entrou na Sonho & Construção e comprou isso tudo? — Joana cerrou os dentes num semi-sorriso enquanto encarava o avô. — E essas frutas?
Eduardo olhou para as próprias mãos e sorriu. Não para ela, mas para si.
— Lembra como você desenhava frutas quando era molequinha? — disse, sem encará-la. Boa escolha. Ela não merecia um olhar que fosse. — Você as desenhava, coloria, e depois rabiscava o nome de cada uma. Você até inventava as suas. E depois ensinei você a esculpir uma maçã em uma tábua. Claro que eu não deixava você tocar no serrote e no martelo, mas você ficava tão feliz…
— Eu era criança — disse ela, como se para provar um ponto. — Achei tudo isso muito bonito, mas não precisava gastar seu dinheiro. Eu não vou ficar.
Eduardo não se moveu. Nem mesmo assentiu. Era claro que ele sabia que ela não ficaria. Tinha sua casa em algum lugar a quilômetros dali, tinha um pós-doutorado em Biologia e uma vida completamente separada. Mas Eduardo sentiu. E a conversa morreu da mesma forma que começou, sem que Eduardo soubesse o nome da tese de Joana.
Quando Joana decidia sair de manhã cedo ou ficar até mais tarde no quarto — o que significava que a geladeira apitava em vão —, Eduardo esfregava toda a mobília com um paninho levemente umedecido, se dedicando até mesmo aos cantos e pontas mais difíceis com escovinhas e cotonetes. Limpava o vidro da cristaleira, espanava os livros da estante e toda a superfície da mesa e os assentos das cadeiras. Mas tinha um cuidado especial comigo (como eu merecia, claro). Borrifava soluções com cheiro de vinagre no meu estofado e o esfregava com movimentos circulares bem precisos. Depois, utilizava cotonetes exageradamente finos e até agulhas para remover sujeiras das mínimas reentrâncias nas minhas conchas de marisco, cavalos-marinhos e flores-de-lótus, sem nunca esquecer de aplicar produtos específicos nas minhas pernas, braços e encosto. Eu me sentia grandiosa. (E devo reiterar: Eduardo limpava a mobília todo dia, ritualisticamente, mesmo que tivesse que ser feito após a meia-noite.)
No mesmo dia que Joana chegara, Eduardo dissera que prepararia um jantar de boas vindas para ela. Mas ela avisara que sairia para comer. A mesma coisa aconteceu durante os cinco dias seguintes. Apenas em seu primeiro sábado na casa, Joana decidiu ficar e aceitar a oferta. Foi então que tive o meu primeiro jantar como líder de uma mesa de mogno com cinco cadeiras temáticas com pomares e frutas. Podia jurar que as farpas microscópicas nas minhas pernas se eriçaram.
Ficou marcado para sete da noite no sábado. As horas se arrastavam e eu ansiava pelo momento. Eduardo saiu cedo para o supermercado com Leandro. Após voltarem para abastecer a despensa, Eduardo realizou seu ritual de limpeza. Foi um pouco mais apressado que o normal, mas era esperado. Aquela noite seria sua. Quando conseguiu sair da cozinha por alguns minutos, caminhou pela sala, ajeitou os quadros na parede, pegou uma toalha, arrumou os candelabros em posições ligeiramente diferentes e suspirou com ambas as mãos na mesa e os olhos cerrados.
Finalmente, o relógio badalou sete vezes.
À primeira vista, Eduardo parecia um homem de tradições, chegando na Sonho & Construção todo elegante e seletivo, provocando tremedeiras na equipe de João Gustavo. Mas se ele as tinha, provavelmente abandonou algumas durante sua vida. Mobília que nem eu nascia com um certo senso do que esperar do mundo. E uma coisa que eu esperava era que o principal provedor de um lar se sentasse na cabeceira de sua própria mesa. Mas Eduardo não o fez. Claro que nunca se sentava em mim, mas sequer me trocou de lugar com uma das cadeiras menos elegantes. Muito menos se sentou na cabeceira oposta. Foi Leandro que me escolheu, que estava surpreendentemente — ou forçadamente — sem seus fones, usando uma camisa social quase em sintonia com o Leandro de dez anos depois que eu viria a conhecer.
— Seja cuidadoso com essa cadeira — disse Eduardo, apontando um dedo para Leandro. Foi a primeira frase do jantar. Puxa vida! Como eu estava feliz!
Eduardo acendeu as velas dos candelabros pela primeira vez, e elas emanaram um brilho dourado sobre a sala. Então, cada um se sentou. Leandro em mim, Eduardo e Joana de frente um para o outro mais uma vez. Eduardo serviu a comida que ele mesmo preparara: salmão grelhado, broto de feijão, talharim e cenouras cozidas com alho e queijo parmesão. Para beber, vinho argentino (já que Joana provavelmente estaria farta dos portugueses) para ele e Joana, suco de laranja para Leandro. Daquele momento em diante, a mistura de aromas remoinhando pela sala de estar se transformou no que passei a considerar o odor oficial dos reencontros: comida deliciosa, cera derretendo lentamente, a essência já não tão sobressalente de madeira nova… Nós, cadeiras, somos criaturas estáticas, mas minhas partículas elementares sacolejaram em um rebuliço dentro de mim.
— Por favor, sirvam-se. — Eduardo abriu um largo sorriso. — Vocês dois amam salmão, então foi o que preparei hoje. Só não posso garantir que o gosto esteja bom. E… Joana?
Joana olhou para ele, brilhos desconfiados nos olhos. (E aqui você deve estar se perguntando como eu via tudo isso com um roqueiro de quinze anos sentado em mim. Bom, eu posso revelar que cadeiras enxergam por todas as partes de sua estrutura. Fica a dica.)
— Bem-vinda de volta — disse Eduardo, cutucando Leandro.
— Bem-vinda, maninha.
Leandro e Joana eram como velhos amigos que haviam se reencontrado, mas que não possuíam mais semelhanças entre si. Mesmo assim, ela oferecia mais sorrisos a ele que ao avô. Como fez agora, virando a cabeça e mostrando os dentes para ele. Era educada o bastante para esperar o avô se servir, mas Eduardo era educado o bastante para servir os netos primeiro. Suas mãos tremiam, mas o sorriso não derretia.
— Leandro tá curioso com Portugal — disse Eduardo após servi-los, dobrando um guardanapo no colo. — Ele viu um documentário sobre o Castelo de São Jorge algumas semanas antes de você chegar.
Leandro assentiu.
— Muitos povos usaram o castelo ao longo da história.
Joana imitou o avô e colocou um guardanapo no colo. A luz das velas realçaram algumas rugas no rosto dela que eu não vira antes.
— Fenícios, visigodos, romanos, mouros e mais — disse ela. — Estive lá duas vezes e as vistas são deslumbrantes.
— Gregos, cartagineses, suevos e até tribos celtas — disse Leandro, aparentemente empolgado com o assunto. — Eu lembro dos nomes, mas não tenho ideia de quem foram os suevos, por exemplo.
Todos riram. Eu fui construída com um conceito místico entalhado na minha madeira: o de uma família feliz. Era algo que eu estava fadada a presenciar algumas vezes em minha existência. Talvez fosse algum tipo de poder intrínseco que herdara das mãos mágicas de Anatólia. Aqueles doze segundos de conversa dos Amorim eram a prova de que o conceito não era um mito. Mesmo assim, aqueles momentos não duravam muito. Eram como lapsos de amor e amizade e risada alegre, onde tudo era perfeito e nada no universo podia interferir. E talvez fosse verdade para todas as famílias, não apenas para os Amorim.
— Está preservado? — perguntou Eduardo.
— É de pedra em sua maior parte — disse Joana, os olhos voltando para o prato. — Não madeira.
— Minha pergunta permanece. — A voz de Eduardo ficou enrouquecida. O lapso da família feliz cessara. Era a primeira vez que notava Eduardo usando um tom insatisfeito com Joana. Mas não durou. Seus olhos estavam brilhando e encarando a neta no segundo seguinte. — Tenho curiosidade com essas coisas. Você talvez não recorde, mas tenho uma especialização em preservação.
— Preservação de madeira e mobília — disse ela, cortando um pedaço do peixe no prato. — O castelo não tem muita mobília hoje em dia. Tem bastante espaço aberto, na verdade.
— Por que isso seria relevante? — Leandro deu de ombros.
O silêncio escorreu pela sala, interrompido apenas pelo vento que cutucava a janela, como se esperando que todos mastigassem a pergunta de Leandro. Joana tinha um jeitinho próprio de constranger Eduardo.
— Estava pensando… — Eduardo pigarreou e bebericou o vinho. — Na próxima semana podíamos visitar o Castelo de Itatiaia. É o mais perto de um castelo que temos por aqui. Eles estão com uma coleção linda de armários antigos.
— Estou indo embora na segunda-feira — disse Joana.
A taça caiu da mão de Eduardo e balançou sobre a mesa, quase se espatifando no chão. Gotas de vinho mancharam a toalha de linho, algumas espirrando em minhas pernas. Tinha gosto de vinagre.
Eduardo pegou o guardanapo e limpou as mãos. Leandro olhou para os dois.
— Você disse dois meses — disse Eduardo. — Por que tão cedo?
— Você tem tudo que ama aqui — disse Joana. — Não precisa da gente. — Olhou para Leandro.
— Como assim? — Leandro franziu o cenho.
— Não aguento ficar — disse ela, encarando Eduardo com uma certa raiva. — Voltei de Portugal pra te dar uma segunda chance. Mas não consigo.
— Ei, o que vocês tão fazendo? — Leandro cruzou os braços. — Eu que não quero envelhecer e ficar doido que nem vocês dois.
Os dois permaneceram quietos. Apenas se encararam em um embate invisível. Se alguém venceu, eu nunca soube, mas Joana se levantou, o salmão quase intocado no prato, e subiu as escadas.
Era o fim do jantar. Antes do sol nascer no dia seguinte, Joana partiu. Moscas se refestelaram no salmão e na cenoura até que Eduardo reunisse coragem para limpar a mesa ao meio dia. Seus olhos estavam marejados, suas mãos trêmulas. A única coisa que fez naquele dia, além de limpar a mesa, foi me espanar e tentar remover as manchas de vinho das minhas pernas.
-- 4 --
— Está tendo um incêndio no Bosque Verde. — Leandro entrou na casa, tirou o casaco e pendurou em um gancho na parede. — Parece que foram folhas secas.
Eduardo estremeceu, as unhas raspando na bengala. Estava sentado em uma poltrona que colocara no lugar onde o relógio de pêndulo dera suas últimas badaladas cinco anos antes.
— Vai chegar aqui?
O Bosque Verde era em uma colina a alguns minutos do casarão dos Amorim. Não dava para vê-la dali, mas o odor de cinzas se impregnava no ar como os resquícios de uma fogueira. Eduardo acordara naquela manhã sentindo o cheiro e gritara, chamando Leandro, pedindo que verificasse de onde vinha o mais rápido possível. Leandro obedecera. Estava sempre lá pelo avô, ainda que algumas vezes o velho Eduardo parecesse não notar. Na minha opinião, ele sentia mais falta de Joana do que a neta merecia.
— Vô, nem um furacão sopraria esse fogo até aqui. — Leandro acariciou os fios ralos na cabeça de Eduardo. — Os bombeiros já estão lá e nem vai espalhar muito. Relaxa.
Eduardo assentiu, mas seus olhos continuaram atentos e fixos nas janelas. Ficou assim durante todo o dia, por vezes observando o lado de fora da casa, outras vezes cochilando, e algumas murmurando sozinho sobre incêndios. Leandro saiu para a faculdade. Apenas quando voltou, mais tarde, e contou para Eduardo que o incêndio terminara, foi que o velho foi capaz de descansar a cabeça aliviado na poltrona.
Naquela época, Leandro não era estava mais acorrentado ao fone de ouvido. Era um bom rapaz de vinte e cinco anos com cabelos ondulados que caíam sobre os ombros. Sua obsessão com Metallica se transformara na tatuagem de uma Thêmis esfarrapada no braço direito, ironicamente compatível com sua graduação em Direito.
— Você ainda fala com a sua irmã? — Eduardo perguntou quando Leandro serviu um pouco de macarrão naquela noite, o sutil odor das cinzas ainda se apegando ao ar. Era uma pergunta recorrente.
— Ela nunca responde. — Leandro sempre mentia. Se Eduardo soubesse ler olhos da mesma forma que mobílias sabiam, enxergaria a hesitação de Leandro. Mas Eduardo apenas balbuciava em concordância.
Leandro passou ao redor da mesa e se sentou em mim. Era sempre ele que me escolhia e, algumas vezes, mesmo após dez anos, ainda deixava escapar elogios ao meu assento confortável ou aos meus braços e encosto habilidosamente projetados. Não ligava muito para as minhas temáticas aquáticas, no entanto. Elas já estavam um pouco maltratadas e não tão impressionantes, de qualquer forma. Eduardo ensinara Leandro a cuidar adequadamente de mim, mas as mãos de Leandro nunca foram tão boas quanto as de Eduardo, nunca tão precisas. E o velho não era mais capaz de ajoelhar para escovar sujeira de uma cadeira igualmente encarquilhada. Certos dias, as trevas se alongavam e nem um pedacinho de luz do sol recaía sobre meu corpo. Lembrava um pouco os dias solitários na Sonho & Construção, aguardando para ser adotada. Em retrospecto, eu recordava daqueles tempos com uma leve sensação de nostalgia, mesmo sabendo que a minha vida era muito mais significativa com os Amorim. No fim das contas, tudo que eu queria era afastar o pensamento que Eduardo Amorim não seria tão longevo como o carvalho. Um dia, ele também seria um pacote comprido empurrado para um caminhão branco.
Eduardo andava depressivo e sozinho, já que Leandro precisava passar bastante tempo na faculdade. Algumas vezes, Jeff, o namorado de Leandro, vinha visitar Eduardo, e ele aproveitava para falar de carpintaria, como desenvolvera técnicas inovadoras para limpeza de vidros, e como levara sua empresa fadada ao fracasso em direção à tempos gloriosos. Jeff escutava, tão paciente quanto Leandro, preparando comida para ele e, algumas vezes, até mesmo me limpando (de forma ainda mais relaxada que Leandro). Mas Jeff não estava sempre disponível, e nos raros momentos em que eu ficava sozinha com Eduardo na casa, a madeira crepitava suas mensagens sutis. Da minha posição pouco privilegiada em relação ao restante da casa, eu não tinha como saber exatamente o que transcorria no andar de cima ou nos reinos cheirosos da cozinha. Mas a madeira falava. Carregava crepitações e vozes e, algumas vezes, eu as sentia trepidando pelas minhas pernas, trazendo o choramingo de Eduardo da privacidade de seu quarto. Os resmungos sobre o que ele pretendia fazer naquele dia, opiniões sobre o tempo e como a vida poderia ter sido diferente se não fosse por seus erros.
Nunca dei muita bola para o que Joana falara sobre dar a Eduardo uma segunda chance. Não queria entendê-la, só queria esquecê-la, como se, ao fazer isso, Eduardo fosse abandoná-la nos cantos de sua mente como uma mobília negligenciada e inacabada. Mas não era verdade. O olhar de Eduardo se esvaziava de tempos em tempos, e algumas vezes o nome de Joana sussurrava pelas minhas pernas, trazido pela madeira. Era assim que eu sabia que Eduardo estava mergulhando em uma espiral de pensamentos.
Certo dia, Eduardo saiu para uma caminhada. Fazia isso de vez em quando, incentivado por Leandro, que insistia que o avô precisava continuar saudável. Naquele dia, Leandro trouxe Jeff para casa e ambos sentaram um de frente para o outro na mesa, exatamente como Eduardo e Joana dez anos antes.
— Minha irmã é muito secreta — disse Leandro. — Ela me contou algo um dia desses no telefone.
— Isso tá chateando você — disse Jeff, segurando as mãos do namorado.
Leandro assentiu.
— Ela disse que eu deveria parar de me importar tanto com Eduardo… E ela chama ele assim, nunca de vô ou avô… Ela disse que ele não era um homem bom. Quando eu perguntei o motivo, ela não quis falar. Eu falei que se ela não ia me contar, então era melhor ter ficado em silêncio. Depois ela desligou.
— Você tem ideia do que ela quis dizer com isso?
— Nenhuma. Tudo que sei é que há alguma coisa no nosso passado, algo que tem a ver com os meus pais. Mas eu nunca soube de nada, e nunca insisti porque eu sei como isso incomoda o vovô.
— Incomoda você também. Você nunca me fala sobre o seu passado.
— Houve um incêndio. Meus pais morreram. Eu era um bebê na época e não lembro de nada. O vô trouxe eu e minha irmã para cá e nos criou. É tudo que sei e não tenho certeza se quero saber mais.
— E Joana…
— Ela culpa o vô por alguma coisa, só não sei o quê.
Um dia, no entanto, cheguei perto de saber o motivo. De todas as pessoas, uma cadeira. Mas a vida interviu, como sempre, e as coisas nunca mais seriam as mesmas para os Amorim. (E para mim.)
A escada crepitou com os chinelos e a bengala de Eduardo, que parou de frente para mim com sua sombra se alongando pela sala. Suas olheiras estavam mais enegrecidas e seus lábios rachados. Estivera chorando.
— Não há muitos como você — disse ele, passando um dedo sobre os cavalos-marinhos no meu encosto. Primeiro, pensei que falava sobre os animais, mas continuou fazendo isso, dedos indo e vindo em padrões indecisos. Depois, Eduardo parou e olhou para as palmas da mão. — Não há muitos como a gente.
Minha madeira estalou dentro de mim conforme eu compreendia suas palavras. Eduardo não estava apenas ciente de minha consciência, mas também possuía as mesmas mãos de Anatólia, capazes de outorgar existência em trabalhos de madeira.
— Eu tinha um que nem você — ele me contou, me virando para ele como se a frente do meu encosto fosse meu rosto. — Um banquinho de madeira de cedro. Não escolhi dar vida a ele. Mas aconteceu, então eu tinha que cuidar dele da mesma forma que cuidava de plantas. — Balançou a cabeça. — Não, não como plantas. Nem mesmo cachorros. Eu o tratava como um filho. Acabou com a minha vida… Não foi intenção dele, claro que não. Mas acabou… Bom…
Lágrimas desciam por suas bochechas, passando por suas rugas e pairando em sua barba branca.
— Acho que fui eu que arruinei minha vida. — Ele riu. — Quem sou eu para culpar um banquinho? Foi…
Leandro entrou com Jeff. O olhar de Jeff saltou de Leandro para Eduardo. Se eu pudesse, pediria que saíssem. Precisava escutar o restante da história.
— Você tá bem, vô? — disse Leandro, colocando uma mão no ombro do avô. — Tá chorando.
Eduardo sorriu.
— Só estava recitando umas rimas românticas que lembrei. Fiquei todo meloso.
Leandro e Jeff trocaram olhares desconfortáveis.
— Tenho algo para falar. — Leandro puxou uma das minhas camaradas com temáticas de pomar e se sentou, esfregando as mãos e mordiscando os lábios.
— Vocês vão se casar — disse Eduardo, apoiando o cotovelo em mim. Era a novidade que eu queria escutar, algo que faria o sr. Amorim esquecer sua família partida pelo menos por um tempo. Mas Eduardo tremia. Ambos podíamos ler os olhos de Leandro muito bem. Aprendemos muito ao longo dos anos. Leandro tinha alguma coisa a dizer e não era um assunto agradável.
Leandro balançou a cabeça e olhou para Jeff como se solicitando coragem. Jeff assentiu, mesmo que hesitante.
— Joana foi para Portugal — disse Leandro. — Dessa vez ela não vai voltar.
Eduardo se sentou em mim.
-- 5 --
A luz do sol que eu tanto amava quando era envernizada e cheirosa acabou não sendo tão amigável ao longo prazo. Vinte anos após ansiar tanto pelos feixes luminosos que cortavam as tábuas da parede da serraria, a minha madeira escureceu, secou e rachou nas bordas. O verniz brilhante que eu pensava que duraria até o fim dos tempos se tornara um mero acabamento áspero e manchado. Mas o sol não era o único culpado. Meus cavalos-marinhos ficaram com cabeças um pouco mais achatadas e os detalhes de seus contornos acumularam pó e sujeira. As flores-de-lótus nas minhas pernas estavam irreconhecíveis, apenas protuberâncias na madeira, resultado de anos esbarrando na mesa e em outras cadeiras. Meu estofado definhara de rubro para um violeta esbranquiçado, mas permanecia praticamente intacto, com exceção de um pequeno corte na lateral. Já me imaginava muito mais parecida com Anatólia em seus últimos dias.
E falando de minha carpinteira, eu desvendara sua frase misteriosa.
Leandro e Jeff decidiram alugar um apartamento nas proximidades, então podiam passar mais tempo com Eduardo, o encorajando a manter uma rotina saudável. Raros eram os momentos de risada e alegria na residência dos Amorim, mas ainda havia algo fluindo pela casa. O que quer que fosse, eu decidi chamar de amor. Podia estar completamente errada — era uma cadeira, afinal —, mas foi aquela sensação que respondeu minhas dúvidas quanto à frase de Anatólia. Quem seria aquela que me amaria? Não importava desde que eu estivesse lá com os Amorim, estática, parcialmente oculta pela mesa. E o amor — ou o que quer que aquilo fosse — fluía de Leandro para Jeff, de Jeff para seu sogro-avô, e de Eduardo para mim, vibrando como vozes na madeira.
Eu e Eduardo passamos a compartilhar um elo especial, o de uma velha criatura de osso com uma mobília de carvalho acabada. Algumas vezes, ele me olhava de formas que só eu compreendia. Outras vezes, sorria ou sussurrava, e quando ficávamos sozinhos ele me contava sobre a época que os pais de Leandro e Joana estavam vivos e decidiram plantar árvores no quintal. Ou daquela outra vez em que Joana tentou contar os peixes que nadavam em um riacho a menos de um quilômetro da casa. Era o chefe de uma família partida, um homem cujos ombros carregavam os pesos da culpa. Mas sabia muito bem como amar e ser amado.
Nunca descobri a história completa sobre o banquinho da boca de Eduardo. Após saber que Joana estava partindo, ele se afogou em um mau humor de culpa que durou certo tempo. Seus hábitos mudaram, sua voz migrou dos tons contidos e educados, repleto de análise e auto-controle, para os tons roucos e entristecidos de um vencido. O tempo melhorou seu temperamento, mas algo se perdera no caminho. Era como se Joana tivesse falecido. De certa forma, foi o que aconteceu. Na década seguinte, ela nunca mais ligou para Eduardo, mas a fofoca que reverberava pela madeira me dizia que Eduardo procurava números de telefone e catava sobre o paradeiro da neta na internet. Nunca encontrara nada.
Até um dia.
Eduardo estava na cozinha contra a vontade de Leandro. Seu neto pedira que não usasse o fogão ou o forno quando estivesse sozinho em casa, uma chatice cuidadosa que me fazia lembrar do filho de Anatólia. O odor de peixe — bacalhau, não salmão — flutuava pela sala, se apegando à minha madeira e ao meu estofado. Permaneceu assim por mais de uma hora. Eu me preocupei, mas como uma cadeira, o que deveria fazer além de ser uma protagonista sem agência? Fiquei parada e não fiz nada até o odor salgado de bacalhau se transformar em cheiro de fogo.
— Meu Deus! — Escutei Eduardo na cozinha. — Leandro, venha aqui! De novo não, por favor! Não, não…
Os alarmes contra incêndio que instalara nove anos antes ganharam vida.
Eduardo saiu da cozinha e parou com uma mão na mesa, as costas ligeiramente curvadas, olhos vazios. Por um instante, parecia que estava enfartando. Suas mãos estremeceram pela mesa e a sensação percorreu até meu corpo através de um dos pés da mesa, que estava encostado em mim.
— Vô! — A voz de Leandro. — Que cheiro é esse?
Àquela altura, a fumaça já se espalhava pela sala.
— Meu filho, vamos sair daqui. — Eduardo finalmente se moveu e minhas farpas relaxaram. — Pegue a cadeira.
— Do que você tá falando? — Leandro não parou. Correu para um closet no pequeno corredor que levava até a cozinha e pegou um extintor. Foi rápido e preciso. Anos atrás, Eduardo pagara um curso dos bombeiros para ele e Jeff.
— Vamos nos salvar, Leandro — Eduardo resmungou, suas mãos ainda na mesa. — Pega a cadeira. A dos cavalos-marinhos.
Na cozinha, escutei o extintor cuspindo seu químico em jatos nas chamas, o suficiente para abafar o lamento de Eduardo.
Leandro voltou vários minutos depois. Seu avô permanecia parado com uma mão na mesa, encarando a porta como se incapaz de alcançá-la.
— Perdemos o fogão — disse Leandro, borrões de cinza em seu rosto e roupa. — O que deu em você, vô? — Não estava com raiva, mas triste.
— A tese da Joana se chama “O fluxo migratório dos peixes de água salgada nas praias do sul de Portugal”. Encontrei num site.
— É mesmo? — Leandro secou o suor da testa, olhos fugindo dos do avô. Abriu todas as janelas e mandou uma mensagem de texto, provavelmente para o seguro do casarão. Quando voltou, balançou a cabeça e pediu que Eduardo se sentasse, puxando uma cadeira para ele.
— Não estou preocupado com a Joana, vô. A casa pegou fogo. Estou preocupado com você.
Leandro se ajoelhou diante dele e pegou suas mãos.
— Eu não devia ter nascido assim… — Eduardo começou a chorar. — Com essas mãos…
Leandro franziu o cenho.
— Como assim?
— O banquinho…
— Você falou alguma coisa sobre uma cadeira há uns minutos. O que era?
O olhar de Eduardo estava longe, afastado da casa e daquele momento, mas rapidamente se focou em Leandro novamente. Completamente lúcido. E Eduardo contou pela primeira vez sobre seu passado. Enquanto falava, eu conseguia sentir seu corpo se mexendo na cadeira. Não tremendo, mas liberando algo, ficando mais leve.
— Joana e você estavam seguros no quintal. Eu voltei pra dentro para salvar seus pais, mas vi o banquinho. Não parecia nada sério, não é? Talvez uma tomada que estourou, certo? Você lembra desse dia?
Leandro balançou a cabeça, sussurrando um “não”. Seus lábios estremeceram.
— Eu fui rápido. Eu me gabava de ser um sujeito rápido na época, sabia? Corri pra dentro, vi o banquinho, levei ele pro lado de fora. Dez segundos, talvez? No máximo, trinta. Seus pais estavam dormindo, então eu ainda precisaria acordá-los caso o cheiro do fogo não tenha feito. Então me apressei mais uma vez, subi as escadas daquela casa velha e…
Eduardo ficou ereto. Minhas pernas repuxaram de leve.
— As chamas já cobriam a porta do quarto dos dois. Conseguia ouvi-los falando algo… Tentando entender o que estava acontecendo. Gritei por eles, mas as tábuas do chão começaram a afundar e me forçaram a voltar. Tive que descer as escadas. Chamei os bombeiros, mas… O fogo se espalhou rápido na casa antiga. Gritei pelos dois debaixo da janela, mas tudo que vi foram sombras conforme as chamas se espalhavam pelas cortinas.
— Por que você nunca me disse nada disso? — A voz de Leandro estava embargada, os dentes batendo uns contra os outros, mas suas mãos permaneciam firmes nas do avô.
— Os bombeiros foram bastante rápidos, mas era tarde demais. E sua irmã… Sua irmã esperou por mim com você no colo. Sentada… sentada no banco. Ela tremia. Ela… Ela chorava muito e você também. E a primeira coisa que ela disse para mim foi… Ela me perguntou por que eu trouxe um banco pro lado de fora antes de subir as escadas? Ela tinha vinte anos na época e você tinha acabado de fazer seis meses.
— E por que você fez isso? — Leandro puxou uma cadeira e se sentou encarando o avô.
— Eu dei vida a ele. Era meu dever.
Leandro apenas olhou embasbacado para o avô, suas mãos entrelaçadas e ressoando com a mesa, cadeiras e tacos do chão. E comigo. Leandro não conseguiu mais fazer perguntas. Se aquele era o motivo para Joana não gostar dele; se ele conscientemente resolveu salvar um banquinho sabendo que poderia estar sacrificando o filho e a nora; se a cadeira dos cavalos-marinhos na sala de estar também tinha vida. Em vez disso, apenas se curvou para frente e abraçou Eduardo. Ficaram assim por um tempo, ainda ressoando com a madeira, ambos cheirando à fumaça e fogo.
Nunca fui capaz de dizer se Leandro acreditou em seu avô. Se fosse para adivinhar, diria que optou por um meio-termo. Talvez tenha ligado para Joana para confirmar a história do banquinho, talvez tenha pesquisado sobre carpinteiros abençoados sem descobrir nada. Talvez não se importasse desde que tivesse seu avô por perto.
No fim, nada disso importava. Meu tempo com os Amorim chegara ao fim.
Eduardo enfartou sete dias depois.
-- 6 --
A casa foi vendida. Dessa vez, a plaquinha de VENDIDO foi colocada em um poste do lado de fora. Foi triste ver os funcionários de João Gustavo novamente. Recompraram toda a mobília, provavelmente com a intenção de recomeçar todo o ciclo da madeira. Leandro e João Gustavo não falaram muito sobre números. Assinaram um documento e a gangue começou a mudar de lugar tudo que eu podia chamar de lar. Apenas eu fui poupada. Leandro não queria me vender, então talvez tenha acreditado um pouco nas palavras do avô.
Me mudei para o apartamento de Leandro e Jeff. Meus dias chegavam ao fim e, de certa forma, eu me via como um reflexo de Eduardo. Carvalho sobrevivia por milênios, mas apenas se fossem nutridos pelo solo. Móveis resistiam quando preservados e bem cuidados, mantidos sempre em um ambiente apropriado. Pensando bem, aquilo também era verdade para os sentimentos em geral.
A vida no apartamento dos dois nunca foi a mesma. O sol me iluminava durante a manhã e parte da tarde, seus raios se esgueirando pelas venezianas eletrônicas. Mas eu não me importava mais. Fui colocada para liderar uma mesa de vidro com dois conjuntos de cadeiras de plástico que sequer tinham cheiro de autênticas. Mas também não queria mais ser líder. Tudo que desejava era ver como Leandro estava feliz. E Jeff. E, depois de dois anos, a menininha de quatro anos que ambos adotaram. Sara.
Foi Sara que me quebrou, devo confessar. Minhas pernas já não eram tão fortes como as mãos de Anatólia. Certo dia, uma delas simplesmente rompeu. Sara machucou os joelhos, mas era apenas o início para aqueles ossinhos. Leandro tentou me consertar, visivelmente triste, dizendo para Jeff e Sara como eu fui importante para seu vô. Como deveria ser preservada, como precisava ser reparada. Mas eu já estava além de meus dias. O singelo mofo que crescia dentro do meu estofado saberia explicar muito bem.
Eu também não queria nada mais.
Leandro e Jeff me enviaram para passar meus dois últimos meses em um container alugado no armazém da Sonho & Construção. Era escuro e úmido, e o sol entrava apenas por uma janelinha perto do teto. O que seria de mim? Não importava. Tudo que eu sabia era que minha consciência, o dom de Anatólia, começava a mirrar rapidamente. Mas posso afirmar que nunca fui tão feliz na vida. Naquele momento, bem ali na escuridão, relembrando as risadinhas de Sara, eu soube que era uma Amorim. E nós, Amorim, éramos feitos de carvalho.