(...) A verdade é que não sei o quanto de minha vida foi sonho e quanto foi realidade. Faz diferença, no fim das contas?
-- Pedro Zephyr, entrevista ao “Jornal do Brasil” em setembro de 1998, duas semanas antes de sua morte.
(...) Ele me dizia sempre, “já vi como vai ser meu túmulo. Sei quando termina o jogo. Você acha que vou ter medo de pesadelo?” Ele chamava o câncer assim, de ‘pesadelo’, mas era sempre com um ar de galhofa. Ele sempre dizia, “Rosa, presta atenção, não tem nada aqui que não tenha existido antes. Já escrevi minha vida toda, já vivi tudo. Não tenho medo de morrer, o roteiro já está escrito. Vai acontecer, e está tudo bem.” E assim ele viveu até o último dia, sem um pingo de medo.
-- Rosa Moncrieff em entrevista para a biografia “Pedro Zephyr Contra o Tempo”, publicada em 2009.
(...) Disseram a ele: vamos fazer você dormir, meu caro, e você terá de nos dizer o que viu enquanto sonhava. Apenas isso: conte-nos o que você viu. Ser pago para dormir era provavelmente o dinheiro mais fácil que ele faria na vida, trato feito e assinado. Como ele poderia saber que pagaria com lágrimas por tudo o que ele sonhou? Ninguém conta aos homens que as decisões dos vinte anos são pagas com sangue aos quarenta. Do contrário, por que alguém iria querer viver até os quarenta anos? Por que as pessoas se dariam ao trabalho de arriscar e escolher, se o futuro já foi preparado de antemão?
-- trecho de “O Nome no Mármore”, conto de Pedro Zephyr publicado em 1978 no livro “Venham Ver O Que Aconteceu Com Ele”.
(...) Como explico? Sou um brasileiro pardo modelo tradicional para a região Sudeste: o resultado do relacionamento clandestino de uma lavadeira adolescente com o filho igualmente adolescente do dono da casa. Estou por minha conta, por assim dizer, desde que saí da barriga de dona Constância. E, veja você, sou afortunado porque consigo sonhar. Pobre não sonha, não tem tempo, não tem energia para sonhar. Gente como minha mãe gasta-se sobrevivendo, sonho é coisa de gente rica. Mas sempre sonhei. Sonhei minha vida de trás para a frente, mesmo quando não tinha um tostão, talvez justamente porque não tinha um tostão. Sonhei minha vida e depois é que eu a vivi. Tudo o que sonhei, ou quase tudo, se tornou real. Não tive escolha. Tentei fazer diferente, mas já tinha sido vivido: só podia andar para a frente e encontrar todos os rostos e os cenários de novo. Então, estou andando. É só isso.
-- Entrevista de Pedro Zephyr para a revista “Circo”, em 1980.
Pedro dizia que tinha sonhado com seu pseudônimo. Ele disse para mim assim: “Dirceu, foi assim que aconteceu. Quando tinha vinte anos, tive um sonho muito lúcido no qual eu vi meu túmulo. Lá estava escrito: PEDRO SILVEIRA, a data de nascimento e de morte, e debaixo disso o nome ELE FOI AMADO COM O NOME DE PEDRO ZEPHYR. E ele sempre se ria disso. “Imagina isso, Dirceu! Sou o filho duma lavadeira semianalfabeta, por que caralhos ia inventar esse nome idiota pra mim?” Mas na hora do vamos ver, ele adotou o ‘nome idiota’ como pseudônimo... E assim ficou.
-- Dirceu Rodrigues, em entrevista para a biografia “Pedro Zephyr Contra o Tempo”.
Pedro Silveira é o corpo físico, me entende? É quem sustenta a fantasia que é Pedro Zephyr. Pedro Silveira trabalha na Empresa de Correios e Telégrafos cinco dias por semana, das nove às seis, para sustentar os sonhos do Pedro Zephyr. Ser escritor não é profissão, não para mim, e nem quero que seja. Não me acho particularmente talentoso, nem inteligente. Só estou colocando no papel os sonhos que tive. Se alguém curtiu, ótimo! Se não curtiram, bem, ouvi falar que o livro novo do Jorge Amado está bem interessante, vão ler e deixem-me aqui com meus devaneios. Que tal assim?
--- Entrevista de Pedro Zephyr ao jornal “O Estado de S. Paulo” em 1979.
(...) Os primeiros seis voluntários enlouqueceram. Que outro termo usar? Ele só soube disso depois de três sessões. O médico queria um homem que não tivesse medo do futuro, e os voluntários anteriores voltavam da sedação aos berros, narrando infernos que Dante não se atreveria a colocar no papel. Eles falavam de tortura, de tiros, de incêndios e de corpos caindo do céu amarrados e amordaçados. Mas o sétimo voluntário? Ele tinha visto um túmulo de mármore com seu nome, e a paz de dever cumprido em seu sonho. E foi por isso que ele foi escolhido para a missão.
-- trecho de “O Nome no Mármore”.
Ele esteve presente desde o dia em que nasci. Ele e minha mãe tinham um relacionamento muito engraçado: ele tinha idade para ser pai dela, mas quando eles falavam um com outro, era como se fossem da mesma idade. Eles nunca tiveram um relacionamento romântico, ao contrário do que as pessoas fofocam. Minha mãe dizia que o Pedro amava as mulheres inventadas; não tinha jeito de uma mulher de verdade competir e ganhar. E, de qualquer forma, minha mãe ficou muito traumatizada com meu nascimento, nunca mais quis se relacionar com homem algum. Deste modo, ficaram os dois cada um em seu mundo, e ao mesmo tempo dividindo o mesmo planeta onde ninguém mais tinha como entrar.
-- Rosa Moncrieff, em entrevista para a biografia “Pedro Zephyr Contra o Tempo”.
Quando ele acordava, era do perfume dela que ele se lembrava
Contra a natureza de seu nome, não era Flora ou Primavera
De que cor eram seus olhos? Seus cabelos? Sua pele?
Que importava?
Ele estava acordado e tudo o mais é névoa
--- Anotação para o livro “Flora, Ou O Testemunho”, finalista do Prêmio Jabuti em 1991.
(...) Para ganhar dinheiro, fiz de tudo. Já fui cobaia de remédio, até. Isso foi em 1948, acho? 1947 ou 1948. Minha mãe tinha acabado de morrer, e eu estava à míngua. Um cara ofereceu uma grana preta para eu tomar umas injeções lá, um troço que nem para que servia... Claro que tudo debaixo dos panos, sem o menor crédito científico. ‘Tava tão mal de grana que topei. Se eu morresse, morri, ué. Meu pensamento sempre foi esse, ainda mais naquela época. Recém-sobrevivente do serviço militar, sem um puto no bolso, sem mãe e sem casa? Foda-se: injeta aí, cara! (estendendo o braço) Durou um ano, esse troço. A grana era boa, consegui juntar um dinheiro. Depois consegui o emprego nos Correios, o cara dos remédios acho que foi preso, ou foi desaparecido. O estrago já ‘tava feito, de qualquer forma.
--- Entrevista inédita de Pedro Zephyr, datada de 1990, e publicada em “Pedro Zephyr Contra o Tempo”.
(...) Flora tinha vinte anos quando eu tinha vinte anos. O problema é que ela tinha vinte anos dali a vinte anos. Eu sabia disso, ela não. Como você conta para uma mulher que você a ama, mas que vocês estão separados por uma parede invisível? Nos meus vinte anos, os pais de Flora ainda não se encontraram. Nos vinte anos dela, quem sou? Um coroa. Ela faz bem de me ignorar, um coroa de quarenta anos que ela encontra quando vai na agência bancária com a féria do dia na bolsa. Flora me ama porque tenho vinte anos; meu problema é que tenho vinte anos e quarenta ao mesmo tempo. Vá você contar isso a ela sem rir ou sem parecer que fugiu do hospício!
-- Trecho de “Flora, Ou O Testemunho”, publicado em 1990.
Quando li os contos do Pedro, não soube o que pensar. Era tudo maravilhoso, muito avançado para a época, muito honesto. Acho que a palavra é essa: não importa quão absurdo fosse o tema, quão bizarra a narrativa, ele sempre escrevia da maneira mais honesta possível, como se tivesse mesmo vivido tudo aquilo. Achei que estava lidando com um hippie chapado, e de repente me apareceu um homem de cinquenta anos de terno e gravata. Ele estendeu a mão e disse, “dá pra fazer alguma coisa com isso? Não posso mais carregar esse tanto de coisa dentro da minha cabeça.” Ele sempre tratou a ficção dele como se fosse real. Cada um dos contos dele, cada um dos livros, ele escrevia como se estivesse redigindo a autobiografia dele. E, no entanto, ele vivia uma existência regrada, cinza até: de casa para o trabalho, do trabalho para casa. E para a casa da Patrícia no fim de semana, ajudar a cuidar da Rosa.
-- Dirceu Rodrigues, em entrevista para a biografia “Pedro Zephyr Contra o Tempo”.
Minha mãe engravidou de um rapaz com quem ela saía quando ela tinha vinte anos. Nunca vi nem uma foto do sujeito, não sei como se chama, se está vivo ou morto. Meus avós ficaram decepcionados, mas depois eles foram se acostumando. Eles eram refugiados de guerra, então nascimentos eram bênçãos e não tragédias. Quando minha mãe estava na faculdade, minha avó cuidava de mim. Depois, o Pedro surgiu na nossa vida. Ele tinha uns quarenta e poucos anos, era nosso vizinho. Foi minha mãe que disse para ele procurar uma editora para os textos dele. Minha mãe sempre foi a fã número um do Pedro, ganhava sempre a primeira edição de todos os livros. Acho que foi ela quem escolheu o pseudônimo dele, não sei ao certo. Entre eles, era uma coisa muito louca. Uma união de almas, eu poderia dizer. Eles pensavam igualzinho em quase tudo.
-- Rosa Moncrieff, em entrevista para a biografia “Pedro Zephyr Contra o Tempo”.
Flora e o Zéfiro. É por causa de uma pintura de Botticelli. A Primavera, no caso. Ideia da Patrícia, claro. A história, pelo que entendi, é que ela devia se chamar Flora, como a avó materna, mas na hora de registrar o pai colocou Patrícia... Foi ela quem deu o apelido para o Pedro: Pé de Vento. Porque ele não parava em canto nenhum, ficava aqui, depois sumia, depois voltava. Se trancava no quarto, saía com um livro pronto. (...) A Patrícia não era amante dele, isso é um fato. Eles se adoravam, mas ele era muito avesso à ideia de romance, sabe? Nunca se casou, nunca teve filhos... Quer dizer, ele não teve filhos biológicos. Ele teve a Rosa!
-- Dirceu Rodrigues, em entrevista para a biografia “Pedro Zephyr Contra o Tempo”.
(...) Quando o cara lá me injetava com os troços dele, eu tinha os sonhos mais lúcidos do mundo. Não sabia que estava sonhando, para mim aquilo era vida real. Não era essa coisa de ver unicórnio nas nuvens, sabe? Era carro de verdade, gente de verdade, tudo como eu vivia. Mas era em tempos futuros. Celular, carro a álcool, televisão colorida, os Beatles, o Caetano Veloso, tudo isso vi nos meus sonhos antes de ver de verdade. E foi aí que conheci a mulher que, no livro, chamo de Flora. Esse relacionamento entre a gente, era tudo metafórico. O maluco lá me dava a injeção, eu fazia um esforço do cacete pra voltar pra ela. Ela era o meu mundo. Na época, eu namorava uma menina da minha rua... “Namorava” naquelas, né? Era 1948, acho que se tentasse colocar a mão dois palmos pra cima do joelho dela, ela chamava o juiz de paz e a polícia, tá me entendendo? Eram os tempos. A Flora, não. Ela deixava colocar a mão bem acima do joelho. Ela foi o amor da minha vida. Por isso que te falo que sonho e realidade, pra mim, são a mesma coisa. Que mulher “de verdade” me deu o que a Flora me deu? Esse amor que tive por ela, só foi uma vez e para nunca mais.
--- Entrevista inédita de Pedro Zephyr, datada de 1990, e publicada em “Pedro Zephyr Contra o Tempo”.
(...) Flora é uma metáfora do amor, não é uma pessoa de verdade. Queria ter tido a sorte de um amor como esse, mas infelizmente nunca aconteceu. Cheguei a ficar noivo, em 1960. Mas a moça desistiu, por motivos que não vem ao caso. Tive outros relacionamentos, mas nada que me inspirasse a escrever. Não tive musas, nesse sentido. O amor é um dos sonhos mais difíceis de capturar em palavras, e é isso que quis passar para o papel quando escrevi essa história em particular. Uma música que ouvi aqui dizia isso: ninguém pode e ninguém deve viver sem amor. Podemos relacionar isso ao meu livro. Adoraria encontrar o autor desta canção para lhe dizer que concordo com o que ele disse, e justamente porque concordo que me dói tanto.
-- Entrevista de Pedro Zephyr para o jornal argentino “El Clarín” em 1992, quando “Flora, Ou O Testemunho” foi publicado no país.
(...) Quando minha mãe estava no hospital, o Pedro vinha todos os dias visitá-la. Trazia o caderno dele e ficava escrevendo enquanto minha mãe dormia. Um dia antes de ela morrer, ele me levou para tomar sorvete e disse, “Rosa, escuta com atenção o que vou te dizer. Ela não vai passar desta noite. Se tem alguma coisa que você quer dizer, diga agora. Devolva a ela o amor que ela te deu, ela precisa saber que está deixando você a salvo aqui.” E ele estava certo, ela faleceu no dia seguinte. Ele estava ali com ela. No ano seguinte, quando ele foi publicar o “Flora”, o livro, ele me disse, “essa história aqui, escrevi no hospital para a sua mãe. Não vai fazer sentido nenhum para ninguém, só para ela.” Quando ele foi indicado para o Jabuti, ele avisou para o Dirceu que, se ganhasse, ele ia devolver o prêmio. “Não escrevi para eles, escrevi para a Patrícia, nenhum prêmio vai tapar esse buraco.” Foi a única vez que o vi brigar com o editor dele, em todos esses anos.
-- Rosa Moncrieff, em entrevista para a biografia “Pedro Zephyr Contra o Tempo”.
Ele me disse, “Dirceu, esse livro é da Patrícia. Que porra é essa de prêmio? Justo por esse? Escrevi cinco livros e eles querem me dar um prêmio pela coisa que nunca quis escrever?” Foi muito difícil, sabe? Esse par de anos, 1989 e 1990, eles foram muito difíceis. Com a doença e a morte da Patrícia, a eleição e o confisco da poupança, um pesadelo. Ironicamente, o Pedro me avisou uma semana antes que o confisco da poupança ia acontecer. Ele estava almoçando comigo e com a Rosa e disse assim, te juro: “sempre falo e vocês nunca me escutam, mas dessa vez vocês precisam crer. Tirem o dinheiro da poupança. Coloquem no colchão, em uma frota de cofres-porquinho, mas tirem o dinheiro do banco.” A Rosa obedeceu, porque a Rosa sempre obedecia ao Pedro, não importava a maluquice que ele dissesse. E, bem, eu não ouvi, e perdi quase todas as minhas economias no confisco de 1990. Pedro quase me esganou quando soube. Ele repetia, “de que adianta saber de tudo antes se não posso ajudar ninguém?” Mas ele ajudou a Rosa, e acho que foi por isso, e só por isso, que ele não se jogou de uma janela ou algo assim.
-- Dirceu Rodrigues, em entrevista para a biografia “Pedro Zephyr Contra o Tempo”.
(...) Quando a Flora nos meus sonhos apareceu chorando, dizendo que estava grávida, pedi pro médico parar de me usar de cobaia. Os sonhos estavam ficando cada vez mais pesados, não estava dando conta de vivê-los daquele jeito. Vi Flora morrendo, vi essa filha que ela teve comigo passar por poucas e boas, eu vi gente sendo presa e torturada e morta... Sonho ou pesadelo, cara? O que você quer? Por que você quer tanto que eu sonhe essas coisas? Onde você quer chegar? Foi o que falei pro cara. O cara me disse ‘você foi o único que não pirou até agora, preciso que você continue. Preciso saber até onde isso vai. Pago o que você quiser’, mas nem por todo o dinheiro do mundo, cara. Não dava para continuar. A minha namorada já estava querendo me internar no manicômio. Na minha cabeça, a Flora existia, e eu ia ser pai aos vinte anos... E eu queria tanto ser pai daquela criança, marido daquela mulher, você me entende? Era tudo o que mais queria na vida. Mas elas não existiam. Elas eram sonho e eu não tinha como ficar no mundo dos sonhos. Bem que tentei, te juro que tentei, mas não rolava de jeito nenhum, eu sempre abria os olhos no fim da sessão e lá estava eu de volta: aquele assento de couro verde, aquele teto com mofo seco, aquela merda de vida em 1948. E aquilo estava me enlouquecendo. Fui embora da clínica, nunca mais voltei. Não tinha como seguir vivendo daquele jeito. Mas foi como te disse, o estrago já estava feito. Dali para a frente, não vivi mais. Tá me entendendo? Tudo o que se passou comigo depois disso foi uma reprise. Uma merda duma reprise que eu não conseguia alterar por mais esforço que fizesse. Me joguei de uma ponte, me joguei de uma janela, e ainda assim sobrevivi. Por quê? Porque não morreria jovem. Vi meu túmulo. Eu morreria velho. Quando juntei dois com dois, entrei em pânico: será que a Flora existe, então? O sobrenome dela era bem incomum, ao contrário do meu. Mas decidi não ir atrás. Se ela existia, então em algum momento a gente ia se encontrar de novo. Tive de viver, até lá, e foi assim que fiquei nos Correios. Era o emprego mais besta do mundo, mas pelo menos era garantido. Foi isso, cara. Fui me guardando para quando encontrasse a Flora de novo.
--- Entrevista inédita de Pedro Zephyr, datada de 1990, e publicada em “Pedro Zephyr Contra o Tempo”.
(...) Algumas pessoas disseram que tenho poderes divinatórios, que fui abençoado com o dom da profecia. Nunca sei o que dizer para essas pessoas, especialmente porque não me pareço com o que se espera de um profeta (para começar, nunca tive barba e fico feio de túnica; tampouco tenho religião ou apreço particular a um deus específico.) Porém, uma coisa tenho em comum com Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel: não fui ouvido em minha terra, ou só fui ouvido depois que a desgraça já tinha acontecido. Um poder inútil, o da profecia. Portanto, não diria que sou um profeta. Apenas escrevi aquilo que vivi em meus sonhos. Quem quiser, que creia.
-- introdução de Pedro Zephyr para a edição especial de vinte e cinco anos do lançamento de “Venham Ver O Que Aconteceu Com Ele”, em 1998. Zephyr faleceu um mês depois do lançamento deste livro.
Quando ele ficou doente, disse que não queria tratamento. De novo aquela história de que o destino já estava escrito, de que ele já tinha visto o túmulo dele. Ele quis viajar, gastar o dinheiro que tinha guardado com tanto cuidado todos aqueles anos. E fui com ele. Passamos seis meses rodando o mundo, parecia até coisa de novela. Claro, sem grandes luxos, dormindo em pensão, comendo em bibocas, mas cruzando a Europa e o norte da África. Tínhamos momentos felizes, claro, mas era uma turnê de despedida. Uma noite, a gente estava em Florença, ele me disse que minha mãe sonhava em ver as pinturas de Botticelli ao vivo, e que era uma pena que não deu para cumprir esse sonho. Comecei a chorar, porque naquele instante, minha vida também não era nem um pouco parecida com um sonho, apesar do cenário. Tinha trinta anos, não tinha mais ninguém na vida. Não tinha marido ou filhos. Já tinha perdido minha mãe, e agora estava perdendo o Pedro. E ele pegou as minhas mãos e disse “sua vida vai começar agora, querida, não está escrita. Te invejo por isso. Você não sabe o que vai te acontecer e isso é ótimo.”
-- Rosa Moncrieff, em entrevista para a biografia “Pedro Zephyr Contra o Tempo”.
(...) Quando eu a vi de novo, era 1968. Ela estava com a Rosa no colo, na fila da agência onde eu trabalhava. Não era sonho: era ela, Patrícia Moncrieff. O sobrenome era o mesmo. E mesmo que o sobrenome fosse outro, eu reconheceria a minha Flora em qualquer lugar do mundo, acha que não? Ela foi a minha vida por um ano todo, sonhava com ela direto mesmo depois de ter fugido do cara dos remédios. Era ela, carregando uma menina de uns seis meses no colo, a Patrícia meio loira e a menina com cabelo preto e cacheado como o meu. Fiz as contas e entrei em pânico. Podia ter me jogado da ponte de novo? Podia. Que é que ia adiantar? Cheguei em casa e me meti a escrever que nem um maluco. Sério, fiquei umas seis horas escrevendo direto, acabei com a tinta da caneta Bic. Coloquei no papel tudo o que tinha me acontecido, não sei o porquê. Se ela não tinha sido um sonho, então eu fui manipulado e precisava enfrentar as consequências. Mas também sabia que não podia simplesmente bater na porta da casa duma menina de vinte anos e dizer “eu sou o seu amante.” Um coroa de quarenta anos em 1968 era o mesmo que uma múmia, cara. Então tive que me contentar em ser um amigo mais velho. Como sabia que a barra ia pesar dali pra frente, ajudei os amigos dela a escapar do país, escondi coisas, fui desviando a família dela do buraco. Eu me tornei o arrimo delas, sabe? Será que isso também já estava vivido? Será que isso era parte da história? Te juro, cara, não sei. Nunca amei outra mulher senão ela, mas não podia revelar o segredo. Como ela iria acreditar? Eu mesmo não acreditava! Por isso escrevi tudo aquilo. Era tudo verdade, o Dirceu só deu uma empolada para deixar mais “literário”. Fodam-se os prêmios todos, não escrevi nada daquilo para ganhar prêmio. Escrevi porque precisava arranjar um jeito de contar para a Patrícia que eu era o cara que sumiu, eu era o pai da Flora. Eu: o cara dos Correios, terno e gravata, quarenta anos, que um dia foi uma cobaia porque era pobre e sem rumo... E sonhou tanto que o sonho se tornou real da pior maneira possível. Não escrevi para contar uma história. Escrevi todos aqueles livros para servir de testemunho. Danem-se os prêmios. Eu vivi aquilo, cara! Como queria ter sonhado e esquecido, mas não foi o que aconteceu.
--- Entrevista inédita de Pedro Zephyr, datada de 1990, e publicada em “Pedro Zephyr Contra o Tempo”.
(...) No fim do caminho, Flora e eu nos demos as mãos. Se houve um momento em que desejei contar toda a verdade, foi naqueles segundos finais, antes de que a respiração dela cessasse. Mas contar a verdade seria uma morte em cima da morte que já se anunciava; ela não amou o homem que segurava suas mãos naquele instante, com suas rugas e manchas senis no rosto, com o cabelo embranquecido e a dificuldade para dormir. Ela amou o homem de vinte anos que viera como uma rajada de vento, levando consigo todas as certezas da infância e, de certa maneira, toda a alegria irresponsável da mocidade; aquele homem desejou reencontrá-la, mas o mesmo vento que o trouxe arrastou-lhe de volta para o começo. Demorei vinte anos para cruzar esse vendaval, e quando cheguei já não era mais quem era. Naquele instante em que nos demos as mãos, porém, creio que ela enfim me reconheceu. Por isso escrevi este testemunho. Porque Flora existiu. E eu a amei.
-- Trecho de “Flora, Ou O Testemunho”